Tempo de ilusões Dante Filho (*)

Tempo de ilusões

Ninguém nega que para um mesmo fato possam existir várias versões. Sob o olhar interpretativo de cada um, coisas vivenciadas por muitas pessoas podem ser vistas de maneiras diversas, inclusive contraditórias.
 
Por isso, discute-se, na filosofia e nas ciências, a questão da verdade absoluta. Se um acidente de trânsito ocorre à nossa frente, dependendo dos fatores internos e externos a que estamos submetidos naquele momento podemos testemunhá-lo de forma diferente, inclusive mudando a opinião inicial sobre suas causas e culpas com o passar do tempo. É possível que informações terminem sendo depuradas pela memória e transforme um acontecimento em outro completamente diferente conforme vão sendo acrescentados novos dados e elementos de nossa experiência sobre o fato vivido.
 
Uma mentira mil vezes repetida pode se tornar uma verdade. Podemos ser enganados por propagandas eficientes. Podemos nos iludir com informações distorcidas. Podemos nos equivocar com nossos filtros ideológicos e morais. Estamos sempre sujeitos a errar feio em nossos julgamentos quando somos submetidos a forças contrárias. Enfim: podemos fazer escolhas erradas na vida por falta de instrumentos eficazes de avaliação sobre coisas que ocorrem à nossa volta, tomando decisões equivocadas simplesmente porque acreditamos que a "nossa opinião é a mais correta".
 
Por essa razão, para muitos traz algum conforto quando o mundo é enquadrado pelo viés da ideologia, separando atos e fatos como sendo de direita ou de esquerda. Todo dualismo tende o nos tornar idiotas universais, mas reconheço que não há nada melhor para nos acomodar numa posição agradável de donos a da verdade quando usamos esse estratagema. Para os cretinos desse tipo de absolutismo mental basta enquadrar os acontecimentos políticos (qualquer um) na clássica redoma da luta de classes ou do irrecorrível darwinismo social para que a luz se revele plena de saberes.
 
Se cidadãos raivosos amarram um delinqüente num poste porque o sistema de segurança é falha aparecem milhares de "humanistas" para denunciar a barbárie de nossa sociedade conservadora. Nesse momento, as opiniões se dividem. A polêmica se instaura. E muitos aproveitam a onda para mostrar de que lado está: do bem ou do mal. Assim, abre-se o campo para todo tipo de oportunismo e demagogia. No caso, os bons compreendem e interpretam as nossas diferenças sociais; os maus professam o "mata e esfola".
 
É nessa hora que os famosos picaretas da compaixão ocupam espaço na imprensa para mostrarem-se "indignados", apontando o dedo para a "direita raivosa" e àqueles que cultivam ideias medievais, já que transformam os membros de nossa ralé em indivíduos destituídos de direitos fundamentais. Trata-se de opinião redentora de nossa humanidade e de nossa infinda capacidade de sermos solidários com os privados de oportunidades de uma sociedade profundamente desigual.
 
Mas isso não isenta que façamos um reparo: quando o governo brasileiro comete simbolicamente um ato de selvageria semelhante com milhares de médicos cubanos esses mesmos "humanistas" se calam, se escondem, fingem que o assunto não é com eles. Ou seja: a indignação é seletiva. Suas opiniões “politicamente corretas” cacarejam. Alguns engasgam nos prolegômenos. Não admitem que acorrentar alguém não possa ter, na essência, a mesma violência do que fazê-lo trabalhar em condições análogas à de escravidão, tornando refém familiares inocentes sob o jugo de uma ditadura.
 
Ambos são fatos objetivos. Podemos interpretá-los sob as mais diversas lentes. Mas é complicado diferenciá-los sob o ponto de vista de que se trata de bandeiras morais diversas, casos distantes, situações diferentes da realidade. Nada disso: aí a coerência obriga a enquadrá-los sob o mesmo manto da humanidade que defendemos. Caso contrário, qualquer formulação de uma opinião torna-se um exercício fútil de palavras jogadas ao vento.
 
(*Dante Filho é jornalista e escritor)


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Postado por: Dante Filho (*), 24 Fevereiro 2014 às 13:11 - em: Falando Nisso


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