Edson Moraes (*)
Sofri um acidente ontem à noite
Ontem à noite desejei ser charreteiro. Ou passageiro de uma charrete. Tempos de quando eu descia do trem na Estação da NOB e à beira da calçada tomava a condução de tração animal.
O cavalo trotava, garboso, parecia avião em céu de brigadeiro. Mas era um equino em chão de cavaleiro. E de charreteiro. Como de costume, o elegante quadrúpede deixava suas marcas. No chão de terra ou na superfície de asfalto ia espalhando cocô. Um cocô que não polui.
Esterco no chão aduba a semente. Deve ser por isso que Campo Grande era tão arborizada. Árvore naquele tempo não era ameaça á integridade física das pessoas e do patrimônio. Era casa de passarinho, fonte de oxigênio, presilha de córrego no leito, sombra de viajores e cardápio de gentes e bichos.
Pneu de charrete tinha cumplicidade com o solo. Namoravam-se. Um não esburacava o outro. Charreteiro era bom de conversa, não usava uniforme, nem roupa de marca. Tinha sempre um chapéu quebrado na cabeça, um cigarrinho mascado no canto da boca, uma calça de barras dobradas nas canelas, um chicote nervoso às mãos e uma história temperada pra contar.
O córrego ainda era córrego e o solo ao redor respirava. O sinaleiro dos cruzamentos era o sinal verde da convivência, do bom-dia e do boa-tarde, do “como vai”, “do “muito obrigado”, do “por favor”, do “pode passar”, do “vamos dançar”, da paciência e da certeza de que devagar se ia ao longe.
Ontem à noite, enquanto aguardava meus filhos em frente à faculdade, uma motorista em marcha-a-ré afundou-me a porta do carro. Estrago medonho na lataria. Susto. Mas nenhuma imprecação. Nem lamentos. Nem discussões. Graças a Deus, ninguém se feriu. Sem vitimização. Sem confronto maniqueísta do "certo" e do "errado". Em vez de xingamentos, apertos de mão. Concórdia. Quem sabe, uma nova amizade, em lugar de desafeto.
Mas mesmo assim me invadiu a vontade de ser charreteiro ou passageiro de uma charrete. Para velejar nas ruas num roteiro de sonhos ingênuos e doces quereres. Ruas sem sinaleiros e sem estatísticas. Ruas de encontros e reencontros. Ruas de tolerância 100 por cento, onde o chão respira e as águas penetram na terra, onde as pessoas se cumprimentam e gentileza é a regra.
Ontem à noite, depois que viajei na vontade de ser charreteiro ou passageiro de uma charrete, voltei a mim e vi o carro amassado e meu delírio esvaído. A realidade estalou-me o chicote no bolso, no lombo e na alma. Mas não me tirou o prazer único e atemporal do passeio de charrete pelas ruas da minha poesia.
(*Edson Henrique Figueiredo de Moraes é jornalista, nascido em Corumbá e radicado em Campo Grande)
Deixe seu comentário
Postado por: Edson Moraes (*), 27 Março 2017 às 13:15 - em: Falando Nisso