Heitor Freire (*)
Ser e parecer
No palco da vida, onde todos somos protagonistas, muitos procuram interpretar personagens que não correspondem à realidade interior de cada um e se tornam assim caricaturas de si mesmos. É importante a busca para a manifestação do nosso DNA verdadeiro.
Essa questão foi abordada por Shakespeare, em sua peça Hamlet, e como todo grande autor, com a sensibilidade que lhe era inerente, percebeu os caminhos que a sociedade de sua época estava trilhando. Daí a pergunta fundamental: “Ser ou não ser, eis a questão. O que será mais nobre: sofrer em nosso espírito as pedras e setas com que a Fortuna enfurecida nos alveja ou insurgir-nos contra um mar de provações e, em luta, dar-lhe um fim?” (Ato III, cena I).
Shakespeare, nessa peça, explora com muita profundidade a condição humana, com temas polêmicos e relevantes de todas as épocas e sociedades: corrupção, traição, incesto, vingança e moralidade – e por meio de uma longa análise filosófica e psicológica do comportamento humano, utiliza raciocínios aplicáveis até hoje, dando à sua obra um ar de atemporalidade, que atravessa os séculos.
Depois que Maquiavel, um século antes, sentenciara que, afinal de contas, o que importava não era ser (ser honesto, justo, virtuoso) mas parecer ser, então, a questão atual é: será mesmo melhor manter as aparências?
Claro que não, para Shakespeare, bem como para toda a tradição clássica, o ato é algo transformador. Quando realizamos uma coisa, quando cumprimos uma tarefa ou desempenhamos um papel, aquilo que fazemos não apenas transforma a realidade, mas, principalmente – e é algo que com muita frequência esquecemos – nos transformamos nós mesmos. Somos aquilo que fazemos. É o ato quem nos transforma interna e externamente. Não são as ideias, nem os sonhos, nem as aspirações, mas os atos que realizamos que configuram o nosso caráter e a nossa personalidade.
O grande problema, como Shakespeare intuiria, é que na sociedade moderna – e na atual digo eu –, o que interessa é mesmo parecer ser. A vida transformou-se num imenso palco onde cada um representa seus papéis. O importante não é mais ser honesto nem justo, mas “fazer um bom papel” e agir de acordo com o script, com aquilo que se espera ou aquilo que foi determinado em alguma planilha.
Em qualquer empresa existem parâmetros, processos e procedimentos perfeitamente normatizados e a única coisa que se espera é que “cumpramos o nosso papel”. Quem age representando um papel torna-se um personagem. Quem age de forma consciente e deliberada querendo apenas ser quem é, torna-se uma pessoa. Melhor ou pior, dependendo dos atos que praticar, mas pessoa.
Agimos a partir do que somos. E é por isso que a verdadeira questão, na hora de tomar uma decisão, será sempre “ser ou não ser”. Quando nos questionamos antes da decisão, estamos escolhendo, na verdade, quem é que queremos ser ao realizarmos uma ação determinada. É por isso que se alguém quiser ser honesto, e não desonesto, então procurará fazer o trabalho honestamente.
E é por isso também que se o que pretendemos apenas é parecer ser honesto então a questão ficará bem mais simples. Bastará fazer, voltando a Maquiavel, de qualquer jeito e com quaisquer meios, porque o que importará, então, será “disfarçar muito bem esta qualidade e ser bom simulador e dissimulador”.
Uma forma de identificar o ser e o parecer se observa hoje no mundo empresarial. As tarefas se realizam e se aperfeiçoam a partir da técnica, que se consubstancia pela repetição dos atos. Com a repetição adquirimos destreza e habilidade.
A questão que se apresenta é a da virtude. Se a decisão for desenvolver-se como humano, sem dúvida, a virtude se destaca. A virtude repetida constantemente nos estrutura interiormente, transforma-nos por dentro quando passamos a cultivar hábitos que aprimoram nossa personalidade. A técnica não produz essa transformação interior porque é um tipo de conhecimento importante para realizar tarefas e resolver problemas, mas sempre será externa.
A virtude se adquire quando queremos fazer a coisa certa porque precisamente é a coisa certa a se fazer, e a desejamos de forma consciente, livre, voluntária e espontânea.
“Cada um se satisfaz com aquilo que fala, mas receberá conforme aquilo que faz” (Provérbios 12,14).
Resumindo, a técnica não nos transforma por dentro, mas os hábitos virtuosos sim, o que nos leva à conclusão: se queremos evoluir como seres conscientes, devemos ser.
(*Heitor Rodrigues Freire – corretor de imóveis e advogado)
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Postado por: Heitor Freire (*), 26 Novembro 2022 às 09:20 - em: Falando Nisso