Reflexos da responsabilização criminal no Direito Civil André Matsushita Gonçalves (*)

Reflexos da responsabilização criminal no Direito Civil

Nascedouro do Direito.
 
Seres vivos ostentam por excelência conflitos entre si. Desde a disputa por espaço, liderança, comida até perpetuação da espécie, acasalamento e reprodução. Os seres classificados pela ciência como irracionais, via de regra, solucionam seus conflitos através do uso da força bruta, qual seja, através da autotutela. Essa forma rudimentar de solução de conflitos guarda uma característica comum, vence aquele que detém maior força bruta, pouco importando se é justo, se é certo, se é razoável. A razão se submete à força.
 
Seres vivos classificados pela ciência como racionais não são diferentes, são conflituosos por natureza. Retrospectivamente podemos identificar o primeiro conflito humano ainda mesmo antes da fecundação. Em uma única gota de esperma existem milhares de espermatozoides, que numa corrida desenfreada pela vida enfrentam-se até alcançarem o óvulo. Ao final um ou dois (gêmeos) espermatozoides conseguem fecundar o óvulo, ou seja, o ser humano é conflituoso em sua essência, em sua genética. Senão vejamos. Colocando dois bebês em um berço e jogando entre eles apenas um brinquedo, indubitavelmente irão disputar aquele brinquedo, portanto o ser humano não precisa aprender a estabelecer conflitos, já nasce sabendo pela sua própria natureza. 
 
Ocorre que os seres humanos, por raciocinarem, perceberam em seus primórdios que a autotutela não satisfazia a demanda pela Justiça, posto que privilegiava sempre o mais forte, e não raro aquele menos provido de vigor físico era o real detentor da razão. Urgia assim encontrar uma nova fórmula de solução de conflitos, uma forma que oferecesse equilíbrio, razoabilidade e igualdade entre todos os integrantes da sociedade. Assim, nasce a ideia da criação do Direito, um emaranhado de regras e normas a que todos deveriam se sujeitar, transferindo a responsabilidade pela solução de conflitos a um terceiro estranho à contenda, terceiro este que deveria agir de igual maneira perante todos que se sujeitassem à sua autoridade através do pacto social. Temos então a figura do Estado, que substituir-se-ia à vontade dos conflitantes e, sob o império da lei, solucionaria os conflitos.
 
Rudimentarmente vemos nascer o Direto, ciência humana que busca solucionar da forma mais justa, pacífica e igualitária os conflitos havidos entre os membros de uma sociedade, afastando-se a busca da satisfação de interesses com imposição da força. Reservou-se a utilização da autotutela às exceções, momentos especialíssimos em que o Estado não alcança o conflito a tempo ou não se mostra capaz de soluciona-los. 
 
Evolução do Direito.
 
A sociedade vem se modificando no mundo e no Brasil, guardadas as características de cada nação, e o Direito, como ciência criada para servir ao ser humano (que se submete aos ditames legais, mas não serve a eles), acompanha tais modificações, eis que não se trata de uma ciência exata e estática, mas sim uma ciência dinâmica, espelhando sempre os anseios da sociedade, que igualmente não é estática. Para bem atender à sua finalidade de solução de conflitos, o Direito Moderno Brasileiro acabou por ser compartimentado, dividido, conforme o bem jurídico tutelado, ou seja, existem vários ramos do Direito, cada qual tutelando determinada espécie de bem jurídico. 
 
É anseio de todos que a grande maioria das condutas humanas cotidianas sejam irrelevantes para o Direito, ou seja, comportamentos humanos eivados de ética, correção e legalidade que dispensam a necessidade de intervenção de um terceiro, diante da inexistência de conflitos a serem solucionados.
 
Todavia nem sempre ocorre dessa maneira, e deparamo-nos frequentemente com condutas humanas dotadas de nocividade, pois ao serem percorridas para satisfazer os interesses de quem as percorreu, violam pretensões legítimas alheias. Quando tal ocorre, a conduta passa a ser relevante para o Direito, a primeira barreira foi violada, a barreira da irrelevância, e surge a necessidade da intervenção de um terceiro imparcial (Estado) para solucionar o novo conflito com base nas regras vigentes (lei). 
 
Solução de conflitos.
 
Busca-se inicialmente a solução desse conflito através de todos os ramos do Direito, exceto do Direito Penal, pois o Direito Penal é o ramo do Direito que tutela os bens jurídicos mais importantes para a existência do ser humano e da sociedade, e a resposta àquele que pratica uma conduta criminosa é a privação de liberdade (o bem jurídico mais valioso que o Estado pode subtrair do indivíduo em tempos de paz), portanto seria desproporcional permitir ao Estado que retirasse o bem jurídico mais caro ao indivíduo como contrapartida à prática de um comportamento composto por média ou baixa nocividade e reprovabilidade social.
 
Frente a um conflito, procura-se a solução em qualquer outro ramo do Direito (Civil, Administrativo, Comercial etc ...), e somente quando todos se mostrarem insuficientes para solucionar a lide, é autorizada a busca pela solução criminal. Por essa razão o Direito Penal tem características residuais, só tutelará o resíduo de conflitos que não foram solucionados pelos demais ramos do Direito.
 
E também pela mesma razão, o indivíduo que é responsabilizado criminalmente pela prática de um crime terá também completado os requisitos para a responsabilização civel, pois quem comete um crime pratica conduta nociva o suficiente para romper a primeira barreira (da irrelevância para o Direito), alcançando a responsabilidade civil, e nociva o suficiente para continuar a agredir progressivamente bens jurídicos alheios até romper a segunda barreira, a barreira do Direito Penal. 
 
Ação civil ex delicto.
 
Explica-se portanto a natureza jurídica da sentença penal condenatória no Direito Civil, qual seja, um título executivo. O trânsito em julgado criminal condenatório imutável faz coisa julgada no cível, portanto, se a vítima ou seu representante legal pretender o recebimento indenizatório de prejuízos advindos do crime, poderá propor a ação civil ex delicto, tratando-se de verdadeira conexão entre as esferas do Direito Penal e a Responsabilidade Civil. 
 
Diante da condenação criminal definitiva e tendo como veículo a ação civil ex delicto a vítima de um crime (ou seu representante legal) não precisa discutir em sede de processo de conhecimento a existência (ou não) do dever de indenizar no cível. Essa obrigação é um fato indiscutível (art. 91, I, do CP), posto que escorado em condenação criminal. O agora demandante no Direito Civil (outrora vítima de um crime) poderá propor desde logo uma ação de liquidação para o estabelecimento do quantum devido pelo condenado criminalmente e após a respectiva ação de execução. 
Não por outra razão o parágrafo único do art. 63 c/c inciso IV do art. 387 do Código de Processo Penal determinam que na sentença penal condenatória será fixado um valor mínimo para reparação de danos, valor a ser executado após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. A vítima poderá se contentar com esse valor mínimo estabelecido pelo juízo criminal e poderá também buscar sua majoração através de ação civil ex delito.
 
Diante do acúmulo da pretensão condenatória, própria do Direito Penal, com a pretensão indenizatória, própria do Direito Civil, é inafastável a conclusão de que, embora se desenvolvam em esferas autônomas, sem subordinação hierárquica alguma, os efeitos penais e civis de entrelaçam de forma umbilical, fazendo com que uma decisão meritória definitiva em esfera criminal tenha o caráter de coisa julgada no cível, e ainda assim, uma eventual absolvição criminal não obsta a propositura de ação cível de caráter indenizatório, eis que a não responsabilização criminal não significa necessariamente ausência de dever de indenizar. Uma conduta humana pode guardar nocividade insuficiente para ser tipificada como criminosa, o que não significa que é irrelevante para o Direito, pois pode conter nocividade suficiente para suportar o dever indenizatório.
 
Constitucionalização do Direito.
 
É indispensável frisar que inexiste hierarquia ou superioridade entre o Direito Penal e o Direito Civil, apenas se difere o bem jurídico tutelado por um e por outro ramo do Direito. O Direito Penal tutela os bens jurídicos mais caros à humanidade, mas não é mais importante ou superior ao Direito Civil. A hierarquia existente entre as normas se refere à Constituição Federal. Vivemos em tempos de democracia e garantismo que exigem o indispensável rigor do Princípio da Constitucionalização do Direito, ou seja, toda a norma infra Constitucional deve se submeter aos Princípios Constitucionais em sua inteireza. Eventualmente uma lei fora submetida a todo rito legislativo normativo, passando por votação nas duas casas do Poder Legislativo Federal, remetida e sancionada pelo Chefe do Poder Executivo, estando portanto formalmente em ordem, ritualisticamente correta, mas seu teor, seu objeto ou seus efeitos de alguma forma contrastam ou violam Princípios Constitucionais, cabendo portanto o questionamento de sua Constitucionalidade. 
 
Característica própria de regimes democráticos de Direito consolidados, em que as normas garantidoras individuais não podem receber mitigação, nem expressa através de emendas Constitucionais, nem tácitas, através da aceitação de normas inferiores que, embora formalmente corretas, contraponham-se aos seus efeitos garantidores.
 
As relações humanas e sociais são complexas, interligadas e sincronizadas, os ramos do Direito também devem ser para que tenham a necessária eficácia, eficiência e efetividade para bem solucionar os conflitos e propiciar um convívio pacífico, harmonioso e justo entre os seres humanos, como é o anseio geral de toda nação. 
 
Avante rumo a paz.
 
(*André Matsushita Gonçalves é professor universitário e delegado de Polícia Civil em MS)


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Postado por: André Matsushita Gonçalves (*), 17 Outubro 2018 às 11:40 - em: Falando Nisso


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