João Linhares (*)
Provocações pronominais
A próclise confessou ao padre Oswald que se apaixonara loucamente pela ênclise e queria casar-se com ela. Todavia o sacerdote ouvira que a mesóclise estava no páreo e presumiu que, com a influência aristocrática dela, que ele bem conhecia e com a qual interagia, poderia haver desarranjos. Conquanto a próclise fosse de família bastante numerosa e estimada, remotas chances ela teria contra a portentosa e pernóstica rival. Suceder-se-ia, na pacata e liliputiana comunidade pronominal, um grande entrevero, caso a disputa pela ênclise ocorresse. Ser-lhe-ia difícil, na condição de líder espiritual, assegurar a concordância entre as envolvidas.
Com efeito, provocar-se-iam bulícios indesejáveis e talvez se desfizessem elos necessários. E nada disso se afigurava interessante, pois se almejava a consonância entre todos nessa religião gramatical. Verbos, advérbios, adjuntos adnominais, conjunções, orações, figuras de linguagem etc agitaram-se. Eram acólitos dos rituais e temiam uma desestabilização do sistema que os regia. Os linguistas vibravam com essa conjectura plausível! O mundo deveria ser livre de regras, afinal, é a essência o que mais importava…
Instigada pela vaidade, a ênclise valorizava-se demasiadamente e isso a movia para batalhas e intrigas. Destarte, para atrair a poderosa e garbosa mesóclise e esticar a mixórdia, produzia-se e abusava de seduções linguísticas. Tomava a dianteira em tudo. Exibia-se. Era um escândalo a sua ousadia em busca daquilo que supunha tratar-se de uma ascensão. Empertigava-se e aspirava conviver no ambiente de prestígio da mesóclise, sem se inteirar de que o seu mundo não era o desta. Classe média e aristocrática dificilmente se juntariam de modo definitivo. Ainda assim, ela desprezava a próclise, porquanto a achava ordinária, vulgar.
Desconhecendo a repelência que lhe devotava a ênclise, a próclise, cujas timidez e aversão a brigas eram evidentes, depreendeu que lhe seria mais profícuo dialogar com a mesóclise e resolver de uma vez essa pretensa pendenga. Fá-lo-ia o mais breve possível. E realmente o fez, sem perda de tempo. Após a conversa, deu-se o inesperado: ambas se encantaram uma com a outra. Aproximaram-se e exsurgiu algo fulminante: olharam-se perdidamente atraídas pelo verbo que subitamente as movia para o futuro e para trás. A partir daquele eterno instante em que seus olhos encontraram-se no infinito, amar-se-iam e também se contemplariam para sempre.
Imediatamente se esqueceram da ênclise e resolveram enamorar-se. Sem dúvida, dar-se-ão muitíssimo bem, contanto que se mantenham sempre unidas, embora se situem eventualmente à distância uma da outra.
Já a ênclise, destituída do seu pedestal, procurou o clérigo e contou-lhe seus pecados, admitindo que não sabia mais onde se colocar. Vilipendiava-se. Depois de tudo, qual seria o seu lugar? E pediu-lhe perdão por ser tão pra frente…
(*João Linhares é promotor de Justiça do Ministério Público de MS, mestre em Garantismo e Processo Penal pela Universidade de Girona - Espanha, especialista em Controle de Constitucionalidade e Direitos Fundamentais pela PUC-RJ e integrante da Academia Maçônica de Letras de Mato Grosso do Sul - O texto foi publicado originalmente no blog do Fausto Macedo, no Estadão)
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Postado por: João Linhares (*), 29 Maio 2021 às 12:15 - em: Falando Nisso