O verão de 2008

O verão de 2008

Recordar é viver. Em fevereiro de 2008 escrevi o artigo que vai abaixo. Por mistérios da vida, perdi o arquivo e precisei escrever outro texto às pressas. Recentemente, fazendo um check-up em meu computador, encontrei por acaso o referido “documento”. Relendo, percebi como a passagem do tempo altera os sentidos de nossa percepção e as análises do momento. Comparem o Brasil daquele período com os fatos atuais. Boa viagem ao passado:
 
“O noticiário brasileiro está funcionando mais ou menos assim: logo pela manhã, o destaque é o caso da menina Isabella. Tudo indica uma grande e sensacional reviravolta. Emoções fortes. O médico-legista George Sanguinetti diz que Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá podem ser inocentes. O laudo pericial da polícia é “medíocre”, declarou Sanguinetto. O caso permanece tal qual a novela das oito. No lance seguinte, aparece Lula falando que a Amazônia tem dono. Ufa!. 
 
Na continuidade, entram as cenas da tragédia na China, com mulheres e crianças desabrigadas, prédios ameaçados de desabamento, e um locutor em off lembrando que até o momento mais de 50 mil pessoas morreram por causa dos terremotos dos últimos dias. Tristeza e comoção. Corta para o apresentador: o emprego com carteira assinada está aumentando no País. Ótimo. 
 
Em seguida, o presidente lança obras do PAC e desanca o judiciário num palanque. Fecha com a imagem do povo aplaudindo.No bloco seguinte, a vez é do desmatamento que vem ocorrendo no norte de Mato Grosso. Blairo Maggi reclama de Carlos Minc. Um contra ooutro. Ringue. Soa o gongo: entra o conflito dos índios e dos arrozeiros na Raposa Terra do Sol. 
 
Depois, na imagem seguinte, estamos nas margens do rio Xingu, enquanto um sujeito sangra com um talho imenso no braço, e um pajé qualquer diz que a hidrelétrica de Belo Monte não sai do papel de jeito nenhum. “Só por cima de meu cadáver”, subentende-se. Entra a fala do bispo Dom Erwin Krautler nomeio. Ele explica candidamente que o engenheiro da Eletrobrás “não entendeu a alma  economia brasileira, sugerindo que os americanos, ao contrário, estão indo mal das pernas. Em seguida, na internet, o presidente não perde a chance de falar mal da imprensa, mostrando que os jornalistas não compreenderam “dimensão incomensurável” da Unasul (União de Nações Sul-Americanas). A declaração passa batida e nenhum jornalista reclama. 
 
Noutro canal, Lula está defendendo o BNDES, já saltando fora do torvelinho das falcatruas que dominam o pedaço, tendo o deputado Paulinho da Força Sindical como ator principal, e assim, zapeando em busca de outro canal, lá está Lula novamente pedindo a aprovação da CPMF, observando em tom grave: “não vi nenhum produto reduzir de preço depois que acabou a CPMF”, e, mais à frente, numa frase de efeito, falando de boca cheia que não deseja que “o presidente do Brasil coloque aquele pano na cabeça como se fosse um sheik do petróleo”, com risos ao fundo da platéia. 
 
Ao mesmo tempo, nos principais sites da internet, num despacho da agência Reuters, ganha destaque uma declaração do prêmio Nobel de Economia de 2006, Edmund Phelps, elogiando o Bolsa-Família,  reafirmando como esse notável programa de renda mínima incentiva o dinamismo da economia brasileira. Fecha o link e vem uma lembrança de Luiz Inácio, em destaque, sobre as vantagens dos biocombustíveis. 
 
É hora do Jornal Nacional: Lula ressurge nas telas e culpa subsídios nos EUA e Europa pela alta dos alimentos. “A inflação é uma desgraça”, grita. Fátima Bernardes e Willian Bonner são generosos e dão espaços para a crise de alimentos no mundo. Explicitam: “no mundo”.
 
Não é preciso dizer que o dia está ganho. Tá tudo dominado.O noticiário da noite é mais do mesmo: tragédia, comédia, tiros, bombas, tremores, gritos, sustos, glamour em Cannes e Lula. Sempre Lula. MuitoLula. A cada 24 quadros, a cada minuto de notícias mundanas, lá está ele, falando, movendo as mãos, apontando o dedo em riste, prometendo o paraíso na terra e jurando que as “elites” non passaran.
 
É Lula sempre lá. Não adianta mudar de canal, de site ou de jornal. Sua figura é hegemônica. Lula é a notícia e a notícia é Lula. E assim tudo segue. Dias e dias. Semanas sucessivas. Até que no fim do trimestre, os institutos de pesquisa apenas confirmam a impressão impregnada no nosso imaginário: a popularidade de Lula está nas alturas. Os índices encantam as esquerdas, dominam mais uma vez o noticiário e intimidam as oposições. E a pauta jornalística fecha-se em si mesma, como se o tempo e o espaço não se abrissem a nenhuma outra lógica que não fosse a de Lula e do êxito de seu eterno programa de auditório”.
 
(*Dante Teixeira de Godoy Filho é jornalista militante em Campo Grande MS - dantefilho@terra.com.br)
 


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Postado por: , 27 Julho 2015 às 13:40 - em: Falando Nisso


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