Semy Ferraz (*)
O legado de Eduardo Galeano
Sou da geração que aprendeu a fazer política desafiando os velhos conceitos e preconceitos, então inquestionáveis. Afinal, vivíamos numa ditadura, e como em todo regime autoritário, não tínhamos qualquer liberdade. Ter acesso à leitura de obras clássicas, então, era uma ousadia, porque driblar a censura era um ato de subversão, passível de punição por decretos comparados ao nefasto AI-5, como o 228 e 477. E uma dessas ousadias foi ter lido “As veias abertas da América Latina”, de Eduardo Galeano, que era passado de mão em mão, quase clandestinamente.
Com seu texto acessível e inteligente – uma rara capacidade de explicar o injustificável –, Galeano foi um verdadeiro mestre ao desconstruir o mito da “civilização” trazida pelos colonizadores para a América “selvagem”. Isso além dos porquês de sucessivos saques, pilhagens, conspirações, traições, massacres – ou melhor, genocídios – e, sobretudo, escravidão, de toda ordem. Isso num tempo em que a chamada Guerra do Paraguai era motivo de ufanismo, por causa da ausência de informações mais amplas sobre os verdadeiros motivos desse sangrento episódio, como o interesse da Inglaterra pela ampliação de novos mercados, inclusive na América.
Sua obra causou um verdadeiro alvoroço no meio estudantil e, obviamente, intelectual. Graças a ela o Brasil passou a enxergar-se dentro da América Latina. Hoje parece curioso, mas uma velha revista semanal, em 1969, foi capaz de trazer numa de suas famosas capas, um mapa do continente sem incluir o País, com a seguinte chamada: “Para onde vai a América Latina?”.
Ainda na década de 1970, quando o jornalista Cláudio Abramo era editor da Folha de S.Paulo, o seu suplemento dominical chamado “Folhetim” teve a coragem inimaginável de trazer Galeano para seu quadro de colaboradores, desafiando os raivosos senhores da censura. Não é difícil imaginar que o sisudo jornalista – irmão do professor Perseu Abramo, emblemático dirigente sindical que enfrentou a ditadura nos anos de chumbo – acabou perdendo seu cargo por ter ignorado as “recomendações” dos censores e de seus chefes em Brasília.
É marcante o depoimento de Galeano ao filme de Sylvio Back (“Guerra do Brasil”, de 1987). Quem ainda não assistiu, recomendo que assista a esse belo documentário. A palavra, principal ferramenta de trabalho, aliada à sua habilidade de observador perspicaz, o tornou uma espécie de consciência viva da humanidade. Esteve presente nos momentos mais dramáticos destes dois últimos séculos, e seu testemunho, oportuno e singular, norteou os caminhos das sociedades contemporâneas, ou, no mínimo, fez o contraponto indignado.
O Brasil (e todo o mundo) reconheceu em vida o legado de Galeano. Durante o único governo de esquerda que Mato Grosso do Sul teve, numa das primeiras edições do Festival América do Sul, ele foi homenageado pelo conjunto de sua obra, pelas relevantes contribuições para a construção da identidade latino-americana. Lamentavelmente, por motivos de saúde, ele não pôde estar presente, em Corumbá, tendo enviado um amigo para representá-lo na homenagem.
O falecimento de Galeano, ocorrido na semana passada, empobreceu irreparavelmente não apenas as letras, mas a humanidade, tamanha a dimensão de sua obra e de seu comportamento como cidadão do mundo e de seu tempo. A América Latina, particularmente, sentirá muita falta de suas reflexões repletas de leveza, genialidade e sutil irreverência. Ele foi mais que um brilhante escritor e jornalista: deu voz aos invisíveis, deu vez aos excluídos, deu consciência à cidadania, deu exemplo aos intelectuais. E o mais importante, sem qualquer pretensão, sem qualquer propósito deliberado.
(*Semy Alves Ferraz é engenheiro civil, ex-deputado estadual e ex-secretário de Infraestrutura, Habitação e Transportes de Campo Grande)
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Postado por: Semy Ferraz (*), 23 Abril 2015 às 17:15 - em: Falando Nisso