Maria José Heitor Freire (*)

Maria José

Há poucos dias, Maria José Carvalho e Castro desencarnou. Aos 93 anos. Ela era viúva do professor Arassuay Gomes de Castro. Eles eram meus compadres, padrinhos da minha filha número seis, a Flávia. Com a passagem, acredito que ela tenha ido turbinar a espiritualidade.
 
Mariazinha, como era conhecida carinhosamente, foi uma pessoa extraordinária. Aos 12 anos, quando ficou órfã de pai e mãe, se viu na contingência de assumir o comando da família, passando a ser arrimo de seus cinco irmãos menores. Tomou conta dos pequenos com muita responsabilidade.
 
Já mocinha, só se casou depois de casar sua irmã, Preta, com o Nabor Gomes Lorentz. Sentiu-se então em condições de tratar de sua própria vida, mas sempre monitorando a vida de todos os seus irmãos, coisa que fez por toda sua vida.
 
O compadre Castro, professor de latim e de português, foi meu professor e foi também diretor do Ginásio Barão do Rio Branco, entidade da Campanha Nacional de Educandários Gratuitos. Ele era funcionário do IAPC – Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Comerciários.
 
Quando voltei a morar em Campo Grande, em 1970, no cargo de gerente de vendas do Fundo de Investimentos Univest, iniciei a implantação do quadro de corretores da empresa, e encontrei circunstancialmente – circunstancialmente em termos, porque nada acontece por acaso – a Mariazinha na rua, e disse a ela que eu estava montando uma equipe de vendas, então perguntei se ela conhecia alguém que poderia se interessar. E ela – aqui cabe um registro, ela que nunca teve papas na língua e o palavrão na boca dela não tinha conotação agressiva – me respondeu: “Convida o Castro, que está naquela porra do IAPC, com um salário de merda”.
 
Naquele mesmo momento fui até o IAPC e lá vi o professor Castro, com um olhar perdido no horizonte, preocupado com a educação de seus três filhos e sem perspectiva de melhoria salarial para atender suas responsabilidades. Quando falei da minha intenção de convidá-lo para o nosso quadro de vendas, pulou e disse na hora: “Topo”.
 
E aquele cidadão que nunca tinha vendido nem caixa de fósforo se tornou um campeão de vendas, montando logo depois uma equipe vitoriosa, ganhando grandes prêmios por cumprir as metas na Univest. Esse é um claro exemplo de que, quando se tem uma determinação firme aliada ao trabalho constante, o sucesso acontece.
 
Bom, mas nosso tema é a comadre Mariazinha. Quando ela estava grávida de seu segundo filho, Jary, o Castro, que era comunista – com reuniões intermináveis, discussões homéricas, sem decidir nada –, começou a chegar de volta das reuniões em altas horas da madrugada. Então a Mariazinha disse para ele: “Vamos parar com essas reuniões, porque eu preciso da sua presença em casa”. Ele, querendo contra argumentar, mas ela era firme: “Para com isso”. E o professor nada. Então numa madrugada que ele chegava pé ante pé, de fininho, logo deu de cara com a Mariazinha com um revólver em punho. Ela deu um tiro no chão e disse: “Se continuar assim, o próximo é na sua cara, seu fdp” E o professor: “Mas, dona Maria, o que é isso?”.
 
O caso é que deu certo. Ele abandonou seus ideais e se dedicou totalmente à família. Bom, passados quase cinquenta anos, estavam os dois conversando na varanda de sua casa, quando o professor perguntou: “Dona Maria, naquele episódio do tiro, a senhora teria coragem de atirar em mim?” E ela enfática: “Teria, não TENHO!”
 
Essa era a minha comadre.
 
Quando tinha 50 e poucos anos, o professor comprou um fusquinha para ela. Que, por sua vez, colocava o banco quase em cima do volante. Ela dirigia praticamente deitada para a frente. Um dia, ela vinha pela Afonso Pena, na hora mais movimentada do dia com seu filho caçula, o Tuca, ao lado. Mariazinha engatou a primeira e foi embora pela avenida afora e o Tuca: “Mãe, passa para a segunda”. E ela: “Cala a boca seu fdp”, e continuou impávida até o fim da avenida.
 
Outra com o Tuca. Os meninos, Jair, Jary e o Flávio (Tuca), foram estudar no Rio. E ela, todos os meses ia de ônibus, pela Andorinha, para visitá-los, quase vinte horas de viagem. E sempre levava muitos mantimentos, principalmente queijo fresco. Numa dessas viagens, quando ela chegou, chamou o Tuca para pegar as coisas que ficavam no bagageiro em cima, e ele perguntou: “Mãe, você não trouxe queijo, né?” E ela: “Não”. Daqui pra frente, no linguajar dela: “quando ele pegou as coisas, o queijo caiu e a “porra” da aguinha do queijo grudou no cabelo dele. E ele: “Mãe, olha só”. E ela: “Cala boca, seu fdp, eu viajo vinte horas para trazer comida para vocês, então não reclama”. A fala dela era direta e objetiva. Não “rodeava o toco”. Espontaneidade, franqueza e sinceridade eram suas características mais marcantes.
 
Afora esses episódios cômicos, Mariazinha sempre agiu com muita responsabilidade, seriedade, honestidade. Uma mulher de caráter. Moldou, de forma indelével, a personalidade de seus filhos: O Jair, médico otorrino com clínica em Ipanema, tem uma clientela de celebridades: Roberto Marinho, Bibi Ferreira, Roberto Carlos, entre outros, já foram seus clientes. Mesmo com esse elenco, toda semana ele cumpre plantão voluntário na Santa Casa do Rio. Ele acaba de ser empossado na centenária e vetusta Academia Brasileira de Medicina, um podium que poucos médicos conseguem alcançar.
 
O Jary, engenheiro civil, exerce a profissão na construtora que fundou há mais de trinta anos. Foi presidente do Crea-MS, por dois mandatos. Presidiu também o Sinduscon – Sindicato da Construção Civil. Atualmente é vice-presidente da Santa Casa de Campo Grande, e teve uma bela atuação em prol dos deficientes, trabalhando para melhorar a mobilidade urbana em nossa cidade. O professor Castro, seu pai, também foi associado da Santa Casa.
 
O Flávio, o Tuca, administrador de empresa, advogado e especializado em informática, é funcionário público federal qualificado, analista judiciário e assistente de juiz, lotado no TRT, o Tribunal Regional do Trabalho.
 
O professor Castro e a Mariazinha deixaram um legado de competência e dedicação. Uma herança “onde a traça não rói, nem a ferrugem corrói” (Mateus, 6-19) e que se perpetua no tempo e no espaço porque alojada na mente e no coração de todos os que tiveram o privilégio raro de conviver com eles.
 
Certamente os dois estão na espiritualidade juntos de novo, na continuidade da vida eterna.
 
(*Heitor Rodrigues Freire – corretor de imóveis e advogado)


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Postado por: Heitor Freire (*), 04 Fevereiro 2023 às 08:00 - em: Falando Nisso


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