Leonardo Nunes da Cunha (*)
Justiça brasileira na vanguarda do atraso
Não pretendo discutir as implicações políticas do resultado da decisão do Supremo Tribunal Federal consagrada pelo voto do Ministro Celso de Mello, que ressuscitou os chamados “embargos infringentes” na Suprema Corte permitindo recurso de seus julgados em desrespeito a sua própria índole extrema, o que fragiliza decisões do Pretório Excelso, que precisam ser preservadas para resguardo do Estado Democrático de Direito.
Esse julgado atendeu aspiração dos condenados no processo do “Mensalão”, de grande repercussão política, que reconheceu prática do maior caso de corrupção da história republicana do Brasil e fez o povo sair às ruas para pedir aplicação das penas, o que, todavia, foi retardado por essa decisão que enfraquece autoridade da Suprema Corte e deixa um travo de sua submissão a interesses políticos. Está clara a estratégia que vem sendo adotada pelos acusados de retardar o trânsito em julgado da sentença condenatória a fim de que possam fazer mudança dos ministros da Suprema Corte e alcançar maioria que aceite seus argumentos jurídicos para livrá-los da cadeia. Essa aberração jurídica somente é possível à vista do absurdo que entrega nomeação dos ministros do Supremo Tribunal Federal à escolha pessoal do Presidente da República, em verdadeiro atentado aos princípios democráticos que exigem respeito ao direito das minorias e proteção às divergências de opinião. Todas as correntes de viés totalitário almejam controle das supremas cortes de justiça a fim de coonestar seus atos atentatórios à Democracia e aos direitos individuais. Só durante estada desse grupo político no poder já foram nomeados oito dos onze ministros da Corte. Felizmente já existe no Congresso Nacional projeto de emenda constitucional, a PEC 17/11 em trâmite na Câmara dos Deputados, visando democratizar esse processo de escolha dos ministros. O povo precisa saber disso e se movimentara para aprová-lo.
Entretanto, o que surpreendeu foi posição decano da Corte, Ministro Celso de Mello apoianado essa manobra política, quando todos os seus pares mais antigos a rejeitaram com argumentos jurídicos incontestáveis. O voto desse ilustre ministro era esperança do povo para inibir a desfaçatez dos acusados e, no entanto, se postou em confronto com anseio da sociedade, justamente no momento em que se prepara para deixar a Suprema Corte. Não colocamos em dúvida honestidade pessoal do ilustre ministro, apenas lamentamos ter de divergir de suas razões, que sempre foram acatadas pela consistência de seus fundamentos e, agora, se mostraram tão frágeis e distanciadas da vontade popular.
Impressiona a falta de atualidade da posição adotada no voto desse digno magistrado que não o enaltece, mas, ao contrário, denuncia preocupante retrocesso no processo hermenêutico da Justiça Brasileira.
O entendimento do ilustre ministro calcou-se na afirmação de que o juiz não pode estar sujeito à pressão do clamor público, mas, apenas, atento à garantia de defesa do acusado. Essa posição, por si só, já demonstra filiação desse juiz à famigerada corrente do “garantismo penal” adotada pelos juristas de feição marxista temporã, que terminam dando proteção aos criminosos como oprimidos que rejeitam a opressão da classe burguesa contida nos valores resguardados na lei penal. Essa corrente, na verdade, é a responsável pelo clima de violência atualmente existente no país porque insiste em garantir a impunidade dos criminosos e impedir alteração da legislação penal para dar mais segurança à sociedade.
O voto desse ministro assusta pelo seu anacronismo técnico e total falta de compatibilidade com a modernidade doutrinária do direito, quando apresenta como fundamentos: 1º - independência do magistrado, que não deve se preocupar com o ruído das ruas; 2º - indagação da vontade do legislador no momento de criação da lei.
Nos dois casos errou fragorosamente. Por isso, incompreensível os motivos que levaram o Ministro Celso de Mello a fazer verdadeira ginástica hermenêutica, usando trampolins enferrujados para atender aos anseios dos acusados, chegando ao ponto, inclusive, de desenterrar os famigerados embargos infringentes.
Isto porque, em primeiro lugar, totalmente equivocada sua noção de independência do magistrado ao entender que ela exige do juiz se mantenha surdo ao “clamor popular”. O digno magistrado confunde manifestação pública orquestrada para pressionar a Justiça, como gosta de fazê-lo as correntes populistas a que pertencem os condenados, com simples “ouvir ruído das ruas” que, não só por necessidade orgânica, mas, também, por lei o juiz está obrigado a atender em seus julgamentos, por imposição do artigo 5º da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro que exige respeito às “exigências do bem comum”.
A Carta Magna dá garantias aos juízes para protegê-los da pressão dos grupos políticos no poder justamente para que possa atender aos anseios populares. Basta ver as garantias que ornam a magistratura, ou seja, vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade dos vencimentos, chamados “Predicamentos da Magistratura”, para verificar que elas buscam resguardá-los das autoridades dominantes e não do povo. A lei é sábia ao reconhecer que o perigo que ronda a magistratura não está no “barulho das ruas”, mas no “sussurro dos palácios”.
Lamentável que o ilustre ministro Celso de Mello não tenha compreendido o momento histórico de seu voto que poderia restaurar a confiança da sociedade em suas instituições públicas, hoje tão abaladas, inclusive pelo próprio caso em julgamento. Sua palavra destoou gritantemente da vontade popular que clama por combate severo à corrupção. Não havia sentido algum para se prestigiar uma desbotada norma regimental em conflito com sistema legal, sepultada pelo próprio desuso e sem eficácia.
O Ministro Celso de Mello esqueceu-se de que a hermenêutica constitucional tem característica própria, pois, visa a interpretar em última instância, uma Carta Política, devendo adequá-la à realidade social, de modo que a Suprema Corte precisa atuar como verdadeira fonte integradora do sistema jurídico, sem se apegar a “tecnicalidades”, mesmo porque o Excelso Pretório não é lugar para discussão de filigranas jurídicas, como indica o artigo 101 da Constituição Federal que não exige seja o ministro sequer formado em Direito, bastando ser cidadão de “notável saber jurídico e reputação ilibada”.
Depois, em segundo lugar, sua preocupação em demonstrar historicamente a vontade do legislador no sentido de manter esse anacrônico recurso, no mínimo, faz regredir nosso pensamento hermenêutico aos tempos da Revolução Francesa. Deve-se ressaltar que é a primeira vez que se invoca utilização desse recurso em ação penal originária do Supremo Tribunal Federal, daí a perplexidade que dividiu a Corte. Entretanto, a argumentação do ilustre Ministro Celso de Mello de que sua preservação atenderia à vontade do legislador, que não revogou a norma que o previa quando teve oportunidade de fazê-lo, leva nosso estágio interpretativo aos primórdios da Revolução Francesa, quando se instalou o Estado de Direito e surgiu necessidade de interpretação das leis em caráter definitivo. Esta função cabia antes ao monarca absoluto que se postava acima das leis.
Por isso, a busca da “voluntas legislatoris” foi o método utilizado pela primeira corrente de interpretação chamada “Escola da Exegese”, que restringia a tarefa interpretativa apenas à descoberta da vontade do legislador porque, se não o fizesse, estaria invadindo competência do Poder Legislativo, dentro dos apertados termos preconizados pela tripartição dos poderes preconizada em “O Espírito das Leis” por Montesquieu, que inspirou a Revolução Francesa.
Esse pensamento jurídico foi logo abandonado dando lugar ao surgimento das diversas escolas hermenêuticas que a sucederam, chegando-se ao entendimento de que cabe ao intérprete revelar a “voluntas legis”, ou seja, a vontade da lei que, ao se integrar ao sistema jurídico e interagir com as outras normas que o compõem, adquire significado próprio para realizar os valores pretendidos pelo Direito.
A última tentativa de forçar devoção à norma, como pretende voto do digno magistrado, surgiu com a corrente liderada por Hans Kelsen, em sua “Teoria Pura do Direito”, que dizia que “Direito é a lei”, ou seja, norma imposta por um poder com capacidade para criá-la e garantir sua aplicação. Esse pensamento hermenêutico permite sustentação da ordem jurídica de regimes totalitários, desprezando a legitimidade das leis exigida pelo Estado Democrático de Direito.
Assim, para Kelsen o sistema jurídico seria fechado e apenas representado pelas leis, todavia, hodiernamente esse entendimento foi totalmente abandonado pela doutrina que reconhece o Direito como sistema aberto e que necessita de retroalimentação. Aliás, no nosso sistema jurídico isso é determinado pelo artigo 5º da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro que dispõe que: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”, o que demonstra que o magistrado não pode se colocar em “torre de marfim”, como um totem, desprezando a vontade social.
Depois de Kelsen, o maior jusfilósofo brasileiro Miguel Reale, em sua magistral obra “A TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO”, mostrou que o Direito não é só a norma, mas composto de três elementos: fato, valor e norma. Cada um deles tem vida própria de acordo com sua natureza e, apenas, se tornam jurídicos quando se conjugam para dar estrutura ao Direito. O Direito somente existe em concreto, ou seja, no momento do julgamento quando os três elementos se encontram.
Desse modo, para atender aos anseios da sociedade, o Ministro Celso de Mello poderia tranquilamente se ombrear com o grupo mais experiente da Suprema Corte, do qual faz parte, e acompanhá-lo para resguardar a admiração que sempre mereceu do mundo jurídico. Preferiu, lamentavelmente, se utilizar de fundamentos totalmente ultrapassados para favorecer acusados que a sociedade abomina, colocando a JUSTIÇA BRASILEIRA NA VANGUARDA DO ATRASO.
(*Leonardo Nunes da Cunha, advogado, foi professor titular de Direito na UCDB-MS, procurador-geral do Estado de MS, secretário de Estado da Educação de MS, presidente da OAB-MS, conselheiro federal da OAB e reitor da UFRR - email leonardonunesdacunha@hotmail.com e blog leonardonunesdacunha. wordpress.com)
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Postado por: Leonardo Nunes da Cunha (*), 25 Setembro 2013 às 13:08 - em: Falando Nisso