Andrew Jennings (*)
Era uma vez, na Fazenda Futebol...
Eu vivo em uma fazenda no norte da Inglaterra. Quando os animais fogem de controle, tomamos medidas drásticas. Um dos grandes touros é o João. Descobrimos que ele esteve roubando comida do estádio de futebol local. João pertencia à Fazenda Olímpica. Fui visitar os donos na Suíça. “Vamos cortar a cauda do João”, eles prometeram. Mas João ouviu a faca sendo afiada, pulou a cerca e sumiu nas colinas. O pessoal da Olímpica não quis persegui-lo dizendo que não era mais responsável. Certas noites ouvimos esse grande animal se lamuriando para a Lua porque, embora não lhe tenham cortado a cauda, removemos seus testículos antes de ele fugir.
Temos problemas parecidos com um dos parentes de João, Ricardo Velhaco. Ele vive na Fazenda Futebol e também esteve roubando comida. Pegamos a faca para cortar seus testículos e ele fugiu há um mês. Esperamos que nunca volte. Apelamos à proprietária da terra de origem dele, sra. Dilma, para ela acabar com o Velhaco, mas ela espera que a Fazenda Futebol resolva seu problema, pondo o Velhaco no moedor de carne e enlatando-o como comida de cachorro.
Precisamos fazer alguma coisa a respeito do touro mais triste da Fazenda Futebol, aquele que negou que havia racismo na fazenda. Mas está difícil encontrar o fugitivo Joseph “Seppy” Blatter. Neste último ano, ele evitou a faca escondendo-se em fazendas do Zimbábue, Mianmar e Azerbaijão. Agora, recolheu-se ao seu estábulo de Zurique gritando “Não estou aqui, vão embora”.
Em janeiro, percebi que Seppy não tem nenhum futuro no futebol. Uma votação de futebol livre e limpa foi anunciada no Catar (parem de rir na última fileira) para indicar um novo delegado do futebol asiático ao comitê executivo da Fifa.
O ansioso aspirante era um principezinho da Jordânia. Ele precisava do emprego no futebol porque não havia vagas na Família Olímpica. Sua irmã e seu irmão mais velho são membros do Clube de Lausanne e outros três príncipes e xeques do Golfo já estão empregados. A Fifa era sua última chance de viagens de primeira classe grátis. Seppy ficou feliz porque pequenos príncipes desempregados não causam problemas e saem bem em fotografias. Melhor ainda: respaldado por dinheiro graúdo local, ele poderia livrar Seppy do atual ocupante, seu rival mais franco, o chefão milionário da dinastia Hyundai coreana.
O dinheiro foi depositado e o príncipe Ali ganhou por 25 a 20. O grande respaldo veio dos sauditas, que vivem em um país onde 50% da população é proibida de praticar o jogo. Um importante acadêmico religioso explica a razão: o futebol pode “danificar o hímen de uma garota”. Como é que ele sabe? Da próxima vez que Seppy disser “o futuro do futebol é feminino”, pense nas donzelas de Riad.
O outro grande apoio veio do Kuwait, mais um país que nada em petróleo. O presidente de sua federação de futebol, o xeque Ahmad Ali Fahad al-Sabah, pareceu sinistro ao anunciar: “Posso confirmar que as 25 pessoas que votaram hoje no príncipe Ali votarão no presidente Blatter no Congresso da Fifa”. Como ele pode ter tanta certeza? A boa nova para Seppy foi ofuscada quando o juiz alemão Guenter Hirsch renunciou ao comitê de ética da Fifa dizendo: “Os responsáveis pela Fifa não têm nenhum interesse real em desempenhar papel ativo na solução e prevenção da violação do código de ética da Fifa”. Seppy, nervoso, atacou violentamente o... Clube Olímpico.
Mesmo aos 75 anos de idade, Seppy não consegue parar de pensar em sexo. Esquecendo-se (de novo) de seu compromisso com a igualdade de gêneros, ele denunciou os senhores de Lausanne por organizarem suas finanças “como uma dona de casa”. Blatter, esquecendo-se de que não revelaria quanto sua Fifa lhe paga, disse: “Nossas contas estão abertas a todos”. E acrescentou: “O Comitê Olímpico Internacional não tem transparência”. Isso não foi muito brilhante.
O grande touro João estava prestes a receber uma carta da comissão de ética do COI inquirindo-o a respeito de uma propina de US$ 1 milhão que ele havia embolsado há alguns anos. Agora Seppy os estava atiçando. Era mais um sinal de sua decadência rumo à loucura.
Aí chegou fevereiro e, de novo, o vice-presidente Jack Warner, de Trinidad e Tobago, foi acusado de vender ingressos da Copa do Mundo a traficantes do mercado negro. Vou pular o ritual de expor esse pilantra todo ano, por tanto tempo um protegido de Seppy. Em março, o próprio Seppy partiu para algum lugar sem repórteres abelhudos. Sim, ele estava fazendo as pazes com a ditadura birmanesa.
Quanto a mim, eu estava do lado de fora do Congresso da Uefa, em Paris, no mês de abril. Estou banido das coletivas à imprensa da Fifa desde 2003, mas Michel Platini é mais tolerante. Com minha equipe da BBC, apanhei Seppy com a guarda baixa, perguntei a Issa Hayatou (presidente da Confederação Africana de Futebol) sobre a sua preferência por propinas e tentei Nicolás Leoz (presidente da Confederação Sul-americana de Futebol). Infelizmente, o chefe dos chefes paraguaio fingiu-se de morto quando lhe perguntei sobre suas propinas.
Alarmes estridentes dispararam no começo de maio quando o sempre cordial Mohammed Bin Hamman, do Catar, anunciou que não poderia sair à caça de votos presidenciais no Congresso da Concacaf de Jack Warner em Miami porque não conseguiria obter um visto.
O generoso Mo, um terrorista? Só faltava essa. Em vez disso, ele optou por visitar Trinidad e Tobago uma semana depois para influenciar 25 estadozinhos da União Caribenha de Futebol de Warner. Os policiais locais parecem relutantes em investigar como Mo passou pelo aeroporto com um saco contendo até US$ 2 milhões. O FBI está adotando uma visão diferente - depois falaremos disso.
Warner pegou a sua parte para liberar os votantes e cada um deles recebeu um envelope pardo estufado com notas de US$ 100. Envelopes pardos! Não dava para disfarçar! O grandalhão Chuck Blazer, que até então parecia estar escondido embaixo da mesa, surgiu com um vídeo da entrega do dinheiro.
Durante algumas semanas, a imprensa americana projetou sua figura de herói em Chuckles por expor o trapaceiro Warner. Ela não havia notado que Jakula e Chuckie vinham saqueando a Concacaf havia duas décadas. Quando publiquei uma lista de pagamentos curiosos que tinham ido para contas bancárias offshore de Chuckie, fui atacado por alguns blogueiros de futebol ingênuos nos Estados Unidos, que não entenderam a coisa. Aí, enviei os documentos ao FBI, que agradeceu - e Chucky partiu em absoluto silêncio.
Muitos figurões caribenhos foram suspensos pela Fifa - acho que seu crime foi terem sido apanhados. Para um deles, de Dominica, já não era sem tempo. Ele é um homem negro e 30 anos atrás conspirou com os supremacistas brancos da Ku Klux Klan e a máfia de Toronto para transformar sua ilha natal num refúgio de bordéis, contrabandistas e traficantes de armas. Sei que o leitor não acredita em mim, mas há um livro sobre isso. Vai acreditar quando eu lhe contar que esse sujeito era um protegido de Jack Warner.
Quando chegamos a junho e à coroação de Seppy para outros quatro anos, Mo já estava gastando uma bolada considerável das receitas de gás do Catar com advogados, tentando limpar seu nome por receber propina. Tudo o que se precisa saber sobre a eleição sem concorrente de Seppy é que ele recebeu um telegrama dizendo: “Estou seguro de que você continuará a servir desinteressadamente esse esporte notável”. Sim, de Vladimir Putin.
O insano Seppy anunciou que Plácido Domingo reformaria a Fifa. Isso era novidade para Plácido e ele sumiu do radar com a mesma presteza com que havia entrado nele. Cansado de problemas, Seppy voou para a terra do presidente azerbaijano Ilham Alyiev, que trancafia e tortura repórteres curiosos. Gostou tanto da experiência que o jato fretado da Fifa o levou ao Zimbábue para um abraço em Robert Mugabe. Seppy tem muita experiência com facínoras. Em 1999, ele voou para a Libéria e abraçou Charles Taylor, que aguarda o veredicto de seu julgamento em Haia por violações de direitos humanos. Uma lágrima veio a seus olhos em julho, quando ele ficou sabendo da morte de Leo Kirch. O magnata alemão da mídia havia fornecido as propinas que levaram a Copa do Mundo de 2006 para a Alemanha e sempre fora generoso com João.
Foram precisos cinco anos para completar aquela história da propina de Havelange. No primeiro capítulo de meu livro Jogo Sujo eu revelo a história da propina de US$ 1 milhão que Blatter entregou à Fifa em março de 1997. Em meu primeiro filme pela BBC sobre a corrupção na Fifa, em 2006, nomeei João Grandão como o feliz recebedor. Seppy negou. Em novembro de 2010, revelei na televisão uma lista de US$ 100 milhões em propinas de contratos pagos a dirigentes da Fifa. E teve o milhão do João. Acredito que ele recebeu muito mais, talvez US$ 50 milhões, por meio de companhias anônimas em Liechtenstein.
Fifa e ISL, um caso de amor. Saltando rapidamente para 8 de dezembro, em Lausanne, um sóbrio presidente do COI, Rogge, anuncia que, como João fugiu de sua fazenda, não será possível cortar-lhe a cauda. Mas ele não escapou da faca de capar da mídia. Oh, sim! Acabou sendo humilhado, porque fugiu.
Não fui o único a investigar as propinas a figurões da Fifa pela empresa de marketing ISL. O corajoso juiz de instrução suíço Thomas Hildbrand, no Cantão de Zug, também trabalhou nisso. Em maio de 2010, o escritório da promotoria de Zug anunciou um acordo. Dois funcionários da Fifa pagariam US$ 5 milhões à entidade em troca de anonimato. Seppy anunciou - e isso vale a pena lembrar - que ele “sabia do acontecido” e “não haveria novos comentários”. O explosivo relatório de 40 páginas de Hildbrand seria enterrado.
Trabalhando com jornalistas suíços, a BBC fez um apelo ao tribunal de Zug alegando que era do interesse público revelar o relatório de Hildbrand nomeando os velhacos. O promotor público de Zug nos apoiou. Tão logo entramos na disputa legal, chegaram cartas dos advogados dos dois homens tentando impedi-lo. Em maio deste ano, eu sabia o suficiente para nomeá-los de João e Velhaco. Mais tarde, revelei que Seppy havia assinado uma confissão de que sabia das propinas - e admitiu que isso fora roubo de dinheiro da Fifa. Ele admitiu também a entrega daquela propina de US$ 1 milhão a João, em março de 1997.
Seppy tentou desconversar. Em setembro, seus assessores de imprensa me disseram que ele “não tinha mais nada a acrescentar a um caso que fora fechado pelas autoridades competentes um tempo atrás”. Um mês depois, contudo, nossas matérias o obrigaram a capitular, e seus assessores disseram aos jornalistas que ele faria um relatório público em breve. “Em breve” é uma expressão elástica na Fifa. No final de outubro, Seppy disse a repórteres incrédulos que havia descoberto problemas legais. Mas prometeu revelar o relatório no final de dezembro. “Entretanto”, acrescentou ele, “isso só poderá ser feito após uma completa análise jurídica em função da complexidade da questão. Ela será entregue a um corpo independente para uma nova apreciação”. A ameaça de exposição o estava deixando realmente louco.
Chegamos então a 17 de dezembro. Em sua coletiva à imprensa em Tóquio, Seppy revelou que havia encontrado um novo problema legal que não poderia divulgar. Mas continuou “inteiramente comprometido com a publicação do arquivo tão logo fosse possível”, em algum momento de 2012. E quem é aquela figura sinistra espreitando das sombras? É o Homem da Mala. Jean-Marie Weber, que admitiu no tribunal de Zug, em março de 2008, ter embolsado os US$ 100 milhões em propinas para dirigentes da Fifa. Ele se recusou a nomear os dirigentes - e Seppy ainda lhe dá boas-vindas na Fifa.
Talvez o esquadrão do crime organizado do FBI de Nova York, que está desencavando 20 anos de corrupção na Fifa, tenha mais sorte. A perspectiva de viver metido num uniforme laranja na Baía de Guantánamo pode restaurar a memória do Homem da Mala. Talvez ele cite nomes. Cuidado com a cauda, João Grandão.
O que nos traz sem esforço aos Jogos Olímpicos no Rio. Por que, penso eu, João estava apertando tão calorosamente a mão do Homem da Mala logo após a votação em Copenhague que deu os Jogos de 2016 ao Rio de Janeiro? Um colega os fotografou. Weber conheceu intimamente muitos membros do COI ao longo dos anos.
Então, será que o Rio pagou? Não vamos chegar a isso. Nos próximos anos, teremos de observar atentamente quem ele estará visitando em 2016. Mas aqui vai um aperitivo. Conheçam Patrick Hickey, de Dublin. Ele é o chefe dos Comitês Olímpicos Europeus. No final de 2008, Hickey concedeu um prêmio especial a um presidente de comitê olímpico nacional europeu por “sua contribuição excepcional ao movimento olímpico”.
Isso foi intrigante. O país era a Bielo-Rússia, o presidente olímpico é também o presidente do país e ditador impiedoso Alexander Lukachenko, que trancafia e tortura milhares de críticos. Hickey não respondeu a minhas perguntas sobre o que Lukashenko fizera para se habilitar a essa honraria. Dias depois, dois lançadores de martelo bielo-russos perderam suas medalhas de prata e de bronze de Pequim após resultados positivos de testes indicarem no seu corpo mais testosterona que um bode que tomou Viagra. Não veremos um deles nunca mais - foi seu segundo escorregão. O COI tem uma longa história de socorrer tiranos. Ordens Olímpicas foram concedidas ao açougueiro de Bucareste, Nicolai Ceausescu, ao ditador búlgaro Todor Zhivkov, ao governante alemão oriental Erich Honecker e a Manfred Ewald, que idealizou o programa de doping da Alemanha Oriental.
Feliz 2012. O Brasil será o coração e o lar das histórias da Fifa e do COI. Vocês bem que mereciam coisa melhor.
[Reproduzido do Estadão de SP, onde foi publicado com tradução de Celso Paciornik]
(*Andrew Jennings, jornalista britânico da BBC, considerado inimigo número 1 da Fifa por suas denúncias de corrupção na entidade, é autor do livro Jogo Sujo - o mundo secreto da Fifa: compra de votos e escândalo de ingressos - que a Fifa tentou, mas não conseguiu proibir)
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Postado por: Andrew Jennings (*), 25 Dezembro 2011 às 20:49 - em: Falando Nisso