Leonardo Duarte (*)
DDI para o Cazaquistão
Resolvi ligar para o meu amigo no Cazaquistão. Além de desejar bom Natal e um próspero Ano-Novo, queria saber a respeito de sua saúde. Soube que ele não passou bem essa semana. Princípio de infarto. Claro, já liguei preocupado: será que aconteceu algo que fez mal ao meu amigo? Torci para que não. Aquelas histórias do Cazaquistão as vezes me abalam muito.
Pois então, liguei...
"Leo, bom falar contigo! Que susto essa semana! Minha pressão caiu e acabei parando no hospital. Mas agora já estou bem melhor".
"O que houve?", tomei a coragem e fiz a pergunta fatal.
"Ah, nem sei como lhe falar... Do nada, nas primeiras horas do recesso do Judiciário, um ministro do nosso Supremo Tribunal deferiu uma liminar para determinar a soltura de todos os 'culpados provisórios' que estivessem cumprindo pena."
"E qual o problema nisso?", perguntei, Segundo a própria Constituição de vocês, uma pessoa só pode ser considerada culpada após o trânsito em julgado, lembra, você que me ensinou isso?"
"Exato, perfeito, essa é a questão", disse ele. "O problema todo é que, tomada ao é da letra, ninguém chega a ser considerado culpado aqui, porque há inúmeros recursos judiciais, e os processos chegam a tramitar por anos a fio. Isso gera uma enorme sensação de impunidade, e é justamente por isso que o Judiciário passou a aceitar que existiam pessoas 'provisoriamente culpadas' para que já pudessem cumprir pena".
Interrompi, lembrando-me da confusão: "É aquela situação maluca né, onde quem não é considerado culpado, segundo a letra fria da Constituição, já pode ir cumprindo pena, porque, caso contrário, nunca cumpriria, já que nunca há o trânsito em julgado de nada, não é? Vocês são o único país do mundo onde a culpa e provisória, ou onde há culpados provisórios..." disse, já constrangido.
"Sim, e o ex-presidente estaria nessa situação. E segundo a liminar concedida, ele, e outros cento e cinquenta mil presos que são provisoriamente considerados culpados – ou que ainda cumprem pena mesmo sendo considerados inocentes, entenda você como quiser - deveriam ser soltos".
"Então, deixe-me ver se entendi", balbuciei... "Primeiro, segundo a Constituição, alguém só é considerado culpado quando há o trânsito em julgado... Esse trânsito em julgado nunca ocorre, então para que não haja impunidade, vocês permitem que pessoas que juridicamente são consideradas inocentes já cumpram pena, é isso?"
"Isso, isso, perfeito, entendeu!", ele disse. "Por isso que o plenário do Supremo Tribunal havia decidido permitir a prisão já após a decisão em Segunda Instância, evitando, com isso, a enorme sensação de impunidade. Mesmo assim, em decisão singular, um dos Ministros decidiu mandar soltar todo mundo, porque não concordava com a decisão do Plenário".
"Pera aí, calma. O Ministro contrariou decisão do Plenário do Tribunal?... Que coisa!" indaguei, surpreso.
"Sim, ele disse que uma nova apreciação desta questão era urgente".
"E o ex-presidente, foi solto?".
"Não, a juíza que executa a pena mandou ouvir o Ministério Público".
"Mas ele será solto, não? Ele e os outros presos considerados provisoriamente culpados?".
"Não, não será, no mesmo dia o Presidente do Tribunal cassou a liminar que os mandava soltar".
Caramba, que bagunça, que confusão jurídica, pensei. "Pelo que entendi, há dois problemas, irreconciliáveis no âmbito judicial: ou se permite a prisão após a segunda instância, quando então vocês teriam essa esquisitice que é gente juridicamente inocente cumprindo pena - porém concordariam com uma agressão ao texto constitucional, enfraquecendo o direito, substituindo-o por uma espécie de justicialismo de momento - ou então vocês terão a impunidade, onde aqueles que podem irão forçar o trânsito das ações para sempre..."
"Isso Leo, perfeito, esse é o desafio do nosso Judiciário... De um lado, permite-se a colonização do direito pela moral... de outro, a ausência de qualquer punição aos mais graves crimes".
"Ué, a solução é do Legislativo, não do judiciário. Porque vocês simplesmente não reformam a legislação processual, para que se passe a considerar 'trânsito em julgado' qualquer ação que já tenha decisão colegiada em recurso de apelação em 2º grau? Vocês iriam substituir essa ridícula noção de ‘culpado provisório' para 'trânsito em julgado provisório', evitando toda essa bagunça, combatendo a impunidade sem ferir o texto constitucional. Afinal, há trânsito em julgados que permitem ser modificados, como, por exemplo, na ação rescisória. Vocês só desenvolveriam e uma noção que já existe..."
Um silêncio profundo seguiu... Fiquei preocupado... "Alô, alô, alô..." Nada. A linha emudeceu e caiu. Fiquei preocupado. Será que o meu amigo está passando bem? Acho que conversei demais. Da próxima vez não falarei para ele como resolvemos as coisas aqui no Brasil: da maneira correta, respeitando a Constituição, combatendo o crime e a impunidade e tratando a liberdade como o maior bem de todos.
Sorte a minha que eu moro por aqui!
(*Leonardo Avelino Duarte é advogado, professor universitário, ex-presidente da OAB-MS, ex-conselheiro federal da OAB e ex-coordenador nacional do Exame de Ordem)
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Postado por: Leonardo Duarte (*), 21 Dezembro 2018 às 11:30 - em: Falando Nisso