Dante Filho (*)
Comala
Nos últimos dias estive em Comala. Demorei a chegar. Foi uma viagem exaustiva. Precisei suspender tudo, desligar o entendimento, jogar os livros da bagagem, despojar e reaprender. Foi complicado fazer um mapa que me levasse até a estrada que, enfim, bifurcasse no caminho de Comala. Fiz várias tentativas para entender que o verdadeiro rumo das coisas é se perder no rumo das coisas. Estranho isso de transformar a bússola no anti-sentido da estrada reta.
Comala é um lugarejo distante, poucas casinhas brancas, ruas estreitas, onde o tempo parece estar sempre entre o amanhecer e o entardecer (nunca se sabe as horas), e os dias se resumem entre os arrulhos de um pombo distante e o crestar dos ventos sobre as árvores esparsas que margeiam um estreito rio sem nome. Em Comala não há energia elétrica nem telefone. É um canto isolado, talvez a última fronteira das nossas despedidas do mundo mundano.
Em Comala vigora a lei do silencio voluntário. Pouco se fala. Temas políticos e econômicos não perpassam pela cabeça de ninguém. Tudo é baço. Tudo é neutro. Não há móveis no quarto, não há cadeira nas salas, não há panelas no fogão. Não sentimos sede nem fome.
O calor que sentimos em Comala nos faz ficar sentado de cócoras o tempo todo rente ao chão, tentando extrair da terra uma breve nesga de frescor, um pontinho de umidade, algo que possa nos redimir antes de nos levar à conclusão de que somos feito da abjeta matéria que excretamos.
O que faz de Comala um lugar especial é o fato de que ali é possível a convivência entre mortos e vivos. Na verdade, não se sabe em Comala quem é vivente ou morrente. De repente, em meio ao silêncio das ruelas estreitas, ouvem-se conversas sussurradas entre pessoas que perscrutam memórias e experiências, tentando descobrir onde se encontraram, onde se perderam, onde amarraram suas dores e culpas, seus crimes e seus erros.
Não há passado, presente ou futuro. O fluxo do tempo é simultâneo.
Ninguém vai a Comala fazer turismo. Ali se vai para experimentar os sinais vitais que fundem forças estranhas além do espírito e da matéria, para reconhecer com clareza inaudita de que depois de tudo não há nada alem de nós mesmos, só o profundo eco que reverbera na escuridão das coisas sem sentido. Oco e vácuo.
Fiquei dois dias em Comala. Senti a placidez do riozinho que corria em direção à montanha, a solidão das casas vazias, falei com velhos sem olhos nem boca, deparei-me com personagens que no passado foram ricos, poderosos e belicosos, agora todos magros, pálidos, com a mesma dor famélica dos vivos, com o mesmo terror nos olhos, com o mesmo enigma que funda em mim a dúvida cruel sobre o que estou fazendo aqui, o que vim, afinal, fazer em Comala, para onde vou depois.
Não há respostas. A aventura humana são pedras que rolam montanha abaixo, ao sabor das suas próprias forças e circunstâncias, estilhaçando seus próprios pedaços ao acaso, ao encontro de seu próprio chão.
Ninguém vale nada em Comala. Tudo é inútil. Todo trabalho não tem valor, todo esforço é vão, todos os ganhos são perdas, não se aprende nada. Ou melhor: aprendemos que a neutralidade é para onde toda a energia se esvai rumo a lugar nenhum.
Saí de Comala num dia frio é úmido. Havia entrado numa casa sem porta, atravessei uma pequena sala, entrei num quartinho escuro, segui por um corredor estreito, até encontrar um portal de ferro maciço untado de lodo e musgo. Tentei abrir e não consegui. Empurrei com força. Nada. Resolvi bater três vezes e a porta se abriu. Segui meus passos e não olhei pra trás.
A estradinha que leva a Comala é triste, sem ardejos e enfeites. Ela volteia entre escarpas soturnas no rumo do sol poente. Às vezes o lugar dá imensa vontade de fazer uma viagem sem volta. Retornar a Comala é o mesmo que se perder no eterno fragor da desesperança. Como disse, em Comala não há nada, só vento e poeira, só vivos e mortos, só sombra e luz.
PS – Comala (pelo menos a cidade aqui descrita) não existe. Ou melhor: existe na imaginação do escritor mexicano Juan Rulfo, no seu romance “Pedro Páramo”, que está completando 60 anos em 2015. O livrinho (ironia) é uma obra prima. Nunca se escreveu tão pouco de maneira tão grandiosa sobre a vida e as coisas. Diante de Rulfo nossa humanidade se redime. Em Comala compreendemos os grotões de nossos sentimentos. “Pedro Páramo” deve ser lido por todos aqueles que pensam na perenidade das coisas toscas, que se arrogam em dominar tudo e todos, que acreditam que o poder momentâneo é a história toda e não apenas uma fração de segundos numa longuíssima viagem sem fim.
(*Dante Teixeira de Godoy Filho é jornalista militante em Campo Grande MS - dantefilho@terra.com.br)
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Postado por: Dante Filho (*), 14 Setembro 2015 às 12:30 - em: Falando Nisso