Dante Filho (*)
Censura e história
Há várias historiografias cercando o 7 de setembro. A imagem oficial é a de Dom Pedro I erguendo o braço, às margens do Ipiranga, eternizada na tela de Pedro Américo, que, inegavelmente, possui dramaticidade inaudita, causando-nos certo encantamento. Na vida real, porém, aquela cena nunca existiu. Mas seu impacto fixou em nossa memória coletiva a existência de uma concretude factual. Vivamos com isso.
Mesmo assim, muitos historiadores perscrutam esse fato – o Grito do Ipiranga – retirando as camadas imaginárias em torno dele para tentar compreender o espírito do tempo. Escolas das mais variadas tendências concederam suas vestes para explicar o que era verdade e o que era mito no processo que resultaria na chamada “Independência do Brasil”.
Seria cansativo escrutinar as várias interpretações dos brasis e tentar demonstrar que, amalgamando-as todas, não chegaríamos à tese verdadeira. O historiador Evaldo Cabral de Mello, dentre os intérpretes do País, em minha opinião, vem empreendendo o esforço mais interessante para mostrar que, na gênese política da criação do Brasil “independente”, no final do século XIX, fora do esquematismo das “patriotadas”, existe outro mundo, longe inclusive da análise marxista.
Não sou historiador. Sou apenas um jornalista autoditada que, por esforço intelectual espontâneo, já consumiu obras históricas em quantidade suficiente para compreender as veleidades humanas. A superfície existe apenas para revelar a profundidade das coisas.
Cabral nos coloca num novo cenário quando mostra que o Brasil de 1888, principalmente no Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Cuiabá, Recife etc., além de vários outros centros urbanos, havia se transformado em campo fértil de vasta burocracia, com milhares de servidores públicos estabelecidos numa burocracia capilar, fertilizando uma classe média ciosa de seus interesses, com clareza suficiente para perceber que um Estado nacional abriria janelas de oportunidades para apropriação do butim gerado pela mais valia de um sistema escravocrata.
Não há como negar: foi a ganância em torno das rendas públicas que, nos bastidores, motivaram a criação do Brasil moderno. O chamado “grito da independência” foi a resposta do patrimonialismo diante da ameaça colocada pelo império português para prolongar o colonialismo por mais tempo do que era suportável.
Claro que qualquer ruptura desse status quo geraria o caos, conforme os propagandistas da época. Talvez seja isso que tenha motivado Dom Pedro I a encenar o “grito do Ipiranga”, num gesto típico de que era melhor perder os dedos do que toda a mão.
Cada vez que estudo o assunto descubro coisas novas. Há documentos, textos, cartas, ofícios, enfim, material que permite navegar em águas rasas e profundas, onde acontecimentos se interconectam numa escala global. Mas fico por aqui.
A questão que pretendo discutir não é essa. O problema é de outra ordem. É a importância do registro do passado no presente. Fico a imaginar se personagens ativos daqueles tempos tivessem aceitado gratuitamente o conformismo das ideias e das palavras e não registrasse as coisas que seriam importantes para a compreensão historiográfica dos dias que correm.
Ou seja, se tivessem praticado – como ocorreu em muitos casos – a censura feroz, queimando documentos, limpando seletivamente a memória, sendo excessivamente prudentes com seus textos, não deixando absolutamente nada para as gerações que viriam.
Bem, não é preciso nem imaginar, pois sem conhecimento crítico não há como exercitar a imaginação. É provável que um dos aspectos culturais da barafunda em que o Brasil se meteu tenha surgido no decorrer das várias ditaduras que vivemos, algo que amoldou mentalidades a aceitar de maneira “cordial” a censura perpetrada por autocratas que se disfarçam de democratas nos dias que correm.
Para muitos – inclusive gente de esquerda – é natural suprimir frases e impedir a publicação de textos com medo de que tal “revelação” atinja os interesses desse ou daquele indivíduo, ofenda essa ou aquela autoridade, desnude fatos que devem permanecer ocultos, esquecendo-se de que, ao proceder dessa maneira, impedirá análises acuradas do tempo presente num futuro próximo ou distante. O papo da “mídia golpista” é uma faceta desse processo grotesco que estamos presenciando.
O jornalismo – atividade efêmera e provisória – não pode perder sua capacidade de linha auxiliar da história, devendo ter coragem crítica para apontar erros, revelar facetas de personagens reais que decidem parte de nossas vidas. O jornalismo deve desenvolver narrativas que possam melhorar a cidadania. Censurar impondo a autocensura mostra um desejo equivocado de perpetuar o atraso em nossa sociedade.
Vade retro.
(*Dante Teixeira de Godoy Filho é jornalista militante em Campo Grande MS - dantefilho@terra.com.br)
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Postado por: Dante Filho (*), 07 Setembro 2015 às 15:00 - em: Falando Nisso