Bola na moita Sérgio Medeiros (*)

Bola na moita

Os pais dele subiram numa árvore para ver o jogo entre Brasil e Paraguai. A árvore estava do lado de fora do estádio, mas quase grudada no muro dele.
 
De um lado do campo, conversavam soldados brasileiros usando o uniforme da seleção brasileira de futebol, e do outro, olhavam-se mudos soldados paraguaios usando o uniforme paraguaio. O jogo ainda não havia começado.        
 
O menino também subiu na árvore, atrás dos pais, e viu, antes de se sentar num galho alto, todo o campo de futebol embaixo. De um lado do gramado, a arquibancada de madeira já estava cheia de torcedores brasileiros. Os torcedores paraguaios estavam sentados em cadeiras do outro lado do campo. Eram em menor número.
 
Como o pai do menino ficara sem dinheiro para comprar ingressos para o jogo, ele convidou a família para assistir à partida do alto da árvore. Isso não incomodou o menino nem um pouco. Pelo contrário, sentiu-se muito feliz sentado na árvore, entre o pai e a mãe, que também sorriam contentes.
 
Nas robustas árvores ao lado, havia outras famílias sentadas confortavelmente nos galhos esperando o início da partida. Eram famílias brasileiras e paraguaias, falando português, espanhol e guarani, e todos se tratavam educadamente e elogiavam a paisagem.
 
O menino ergueu os olhos e viu do outro lado do rio a cidade paraguaia. As casas brilhavam ao sol. No lado brasileiro fazia um pouquinho de frio.
 
De repente o pai do menino perguntou:
 
– Cadê as minhas luvas?
 
Ele as procurou no bolso do casaco e só achou uma.
 
– Será que eu a derrubei? – ele perguntou olhando para a mulher.
 
– Acho que estou vendo a luva lá embaixo – comentou a mulher olhando para a calçada.
 
Prontamente o filho disse:
 
– Vou pegar!
 
E desceu até a calçada. Procurou a luva perdida entre as grossas raízes da árvore. Algumas pessoas estavam chegando para ver o jogo. Uma senhora parou no portão do estádio e chamou o menino:
 
– Entre comigo!
 
O menino se viu empurrado para dentro do estádio pelas mãos fortes da mulher. Ela lhe pagou o ingresso. Foi tudo muito rápido. De repente ele estava sentado na parte mais alta da arquibancada, ao lado da mulher. Ela recendia a perfume e sorria olhando para os dois times parados no gramado.
 
A mãe e o pai do menino começaram a abanar para ele da copa da árvore. O menino ficou de pé na arquibancada e acenou para os dois.
 
– Sente! – ordenou a senhora perfumada passando-lhe um saco de pipoca.
 
O menino começou a comer devagarinho a pipoca quente. O juiz ainda não havia apitado o início da partida. Era como se ela não fosse começar nunca.
 
– Ai de mim! – exclamou a mulher.
 
O menino olhou para a sua benfeitora e viu que ela estava sem um dos sapatos. Entre as tábuas da arquibancada havia vãos e o sapato da mulher caíra por um deles.
 
– Pegue o meu sapato! – ordenou a mulher.
 
O menino virou o saco de pipoca na boca e desceu a arquibancada mastigando sal. Chegando ao chão, ele contornou a arquibancada e entrou debaixo dela, para procurar o sapato da mulher. Estava escuro ali. Ouviu então um movimento suspeito entre as folhas secas. O sapato da mulher estava se mexendo! Dava saltos! E não era um sapato: era uma bota.
 
Ele agarrou a bota e apertou-a contra o peito. A bota se mexeu violentamente tentando escapar. O menino correu então para fora e depois subiu a arquibancada com a bota indócil miando. Ela miava!
 
– De onde tirou isso? – perguntou a mulher com olhos arregalados. – Não é minha!
 
Ela tomou a bota das mãos do menino, para examiná-la melhor. Do cano da bota saiu a cabeça negra de um gato. A mulher soltou um grito, o gato fugiu descendo a arquibancada por cima dos ombros das pessoas. Houve uma enorme agitação na arquibancada. Furiosa, a mulher lançou a bota na direção do gramado. Ela caiu nas costas de um militar.
 
O gato atravessou o gramado e pulou na torcida paraguaia. Houve gritos e gargalhadas.
 
A mulher foi retirada do estádio capengando. Cercada por militares, ela repetiu várias vezes que o sapato dela havia ficado debaixo da arquibancada, mas ninguém quis lhe dar atenção. Colocaram-na na calçada e fecharam a porta do estádio. O menino a acompanhou e ficou em pé ao seu lado sem dizer nada.
 
– Subam! – gritaram os pais dele sentados confortavelmente no galho da árvore mais próxima.
 
– A senhora vai gostar da vista – disse educadamente o menino.
 
A mulher aceitou o convite e subiu na árvore gemendo um pouco. Sentou-se num galho bem grosso, pois era corpulenta e desejava segurança.
 
– Ai! – gritou a mulher.
 
Sem que ela tivesse dito nada, o menino percebeu que o único sapato que lhe restara também havia caído como o outro. Agora ela estava descalça.
 
– Vou pegar! – disse o menino descendo prontamente da árvore.
 
Ele vasculhou a calçada e não encontrou nada que lembrasse um sapato entre as raízes da árvore.
 
Nisso, apareceu um senhor e bateu na porta do estádio. Quando a porta abriu, ele chamou o menino e o empurrou para dentro.
 
– Tenho pavor de altura – ele confessou ao menino. – Ficaremos em pé na beira do gramado. Assim você poderá pegar a bola quando ela correr nesta direção.
 
O jogo ainda não havia começado. O menino olhou para cima e abanou para os pais. A senhora sem sapatos agitou a bolsa sobre a própria cabeça. De repente a bolsa abriu e tudo o que tinha dentro dela foi caindo entre os galhos.
 
O menino ficou sem saber o que fazer. Devia ficar ali ou ir para a calçada catar os objetos que caíram da bolsa daquela senhora?
 
Nisso, a bola do jogo veio correndo e passou entre as pernas do menino. Então o jogo havia começado e ele não ouvira o apito do juiz? A bola sumiu numa enorme moita de capim-cidreira.
 
– Traga ela de volta! – pediu o senhor ao seu lado. – Sem bola não haverá jogo.
 
O menino saiu em perseguição da bola e enfiou o braço direito na moita de capim-cidreira. Apalpou a bola: ela estava quente e cacarejou como uma galinha velha. Surpreso, o menino puxou para fora da moita uma galinha choca e saiu correndo com ela na direção do gramado. Segurou-a pelas patas.
 
A galinha estava furiosa, bateu fortemente as asas e acabou escapulindo da sua mão. Depois ela correu na direção do time do Brasil, que aparentemente a elegeu como mascote. Todos os jogadores correram atrás da galinha mexendo os braços como se fossem asas. Aos gritos, a galinha atravessou o gramado e voou sobre a cabeça dos torcedores paraguaios.
 
– De onde saiu esse frango? – indagou bastante contrariada uma autoridade brasileira.
 
As autoridades paraguaias assistiram a tudo impassíveis. Haviam tacitamente escolhido o gato como mascote do seu time.
 
Como o menino estivera diretamente envolvido no incidente, foi retirado do estádio. A porta pesada bateu às suas costas. Ele catou depressa na calçada as coisas que haviam caído da bolsa da senhora e as levou cuidadosamente para cima.
 
– Isso não é meu! – exclamou a mulher recusando aqueles objetos.
 
O menino deixou tudo num buraco que havia no tronco da árvore e sentou-se num galho para ver o jogo.
 
– Não vai haver jogo!
 
Todos ouviram nitidamente uma voz forte pronunciar essa sentença. Era como se a copa da árvore tivesse falado!
 
– Quem disse isso? – perguntou atônito o pai do menino. – Uma autoridade militar?
 
– Quem foi? – repetiu perplexa a mãe do menino.
 
– Eu é que não fui! – exclamou a mulher.
 
Então todos desceram resignadamente da árvore.
 
De repente a calçada ficou cheia de torcedores das duas seleções. A porta do estádio se abriu e mais gente saiu e ganhou a rua.
 
– Então não haverá jogo? – perguntou perplexo o menino.
 
– Só se você achar a bola – comentou alguém às suas costas.
 
Mas o menino sabia que era difícil achar coisas perdidas naquele estádio. A bola talvez jamais fosse encontrada... A luva do seu pai também jamais seria encontrada. Os sapatos da senhora perfumada também jamais seriam encontrados...
 
Como o estádio não tinha iluminação, todos decidiram abandoná-lo antes que escurecesse. A bola de fato não foi encontrada, mas, quando os torcedores e os jogadores já estavam longe, o menino se lembrou de que havia duas moitas de capim- cidreira perto do gramado. O menino enfiara o braço só numa das moitas! Não tivera tempo de examinar a outra!
 
Na manhã seguinte ele voltou cedo para o estádio e pulou o muro. A grama estava úmida. O sol mal começava a despontar no horizonte. Uma lua grande pairava sobre o rio.
 
O menino correu na direção da segunda moita de capim-cidreira que ainda não havia examinado e enfiou nela o braço. Ele apalpou novamente a galinha choca!
 
– Desisto – disse o menino recolhendo o braço.
 
Olhou para as árvores que circundavam pelo lado de fora o estádio. Estavam agora todas iluminadas. Eram muito altas.
 
O melhor do jogo fora ter subido numa dessas árvores! Disso ele nunca mais se esqueceria. Em pé num ângulo do gramado, examinou tudo demoradamente.
 
Deu finalmente as costas para o campo, onde agora corriam os quero-queros, e pulou de novo o muro do estádio.
 
(Conto do livro infantojuvenil ALGAZARRA DAS ÁRVORES, ainda inédito, do poeta, escritor e tradutor Sérgio Medeiros natural de Bela Vista MS e residente em Florianópolis SC - publicado hoje aqui no Blog e no suplemento cultural do Diário Catarinense)


Deixe seu comentário


Postado por: Sérgio Medeiros (*), 19 Julho 2014 às 11:02 - em: Falando Nisso


MAIS LIDAS