Leonardo Avelino Duarte (*)
Atire a primeira pedra
Em meados da década de 60, a Corte Suprema estadunidense julgou um famoso caso em que se discutia saber se era possível pichar e queimar, em praça pública, a bandeira norte-americana. A decisão, que entrou para a história, entendeu legítima a referida manifestação, porque os juízes consideraram que o símbolo supremo da nação americana haveria de ser o cidadão, e não a bandeira, de sorte que quando se presta homenagem à bandeira, na verdade, homenageia-se os seus cidadãos, cuja a encarnação jurídica são os Estados Unidos da América.
De fato, se é possível que o cidadão - razão máxima de existir dos Estados Unidos da América - possa honrar a sua bandeira, também poderia desonrá-la, cabendo à censura ou a reprovação a este ato recair no campo da moral e dos costumes, e não ao campo do direito. Em essência: o símbolo maior era o indivíduo, e não a bandeira, e como tal, o cidadão americano pode promover manifestações queimando, inclusive, a sua bandeira.
Nos parece fora de dúvida que a utilização de imagens de Cristo em situações como a ocorridas na última Parada Gay, em São Paulo, é de extremo mal gosto, reprovada, inclusive, por considerável parte da comunidade LGTB. Mas se sua intenção era chocar, ela atingiu plenamente o seu objetivo, especialmente em razão da reação desproporcional havida por alguns setores da sociedade.
Foi surreal, na verdade, mesmo para olhares acostumados a observar a paisagem brasileira, observar a Câmara dos Deputados, por meio de alguns integrantes da sua chamada bancada cristã, protestar contra este ato. Lembra o episódio de Maria Madalena, com a exceção de que neste caso jogaram as pedras.
Quem assiste a cena acha que tudo está bem no Brasil, que as reformas política e econômica já foram devidamente concebidas, que os partidos políticos já resolveram o problema crônico do financiamento de campanhas, que a inflação está controlada, a miséria combatida e que não vivemos algo senão um a discussão moral e ética, muito mais ligado ao campo dos debates sociais do que aos debates políticos.
Também assombra o fato de que os ateus, judeus e muçulmanos não reclamem dos inúmeros feriados religiosos, nem dos crucifixos nos órgãos públicos, ou do ensino religioso obrigatório em muitas escolas públicas.
Ou pregamos a tolerância, ou voltaremos à época das cruzadas, protagonizando episódios como a do Charles Hebdo. Dois valores essenciais às democracias ocidentais parecem as vezes serem esquecidos: o da tolerância com o que nos é diferente, e o de que o símbolo máximo do estado é o indivíduo.
Afinal, as democracias sociais modernas - onde se combate a pobreza, se defende o individuo e se prega a tolerância - nos parecem muito mais cristãos do que as teocracias da Idade Média, onde muitos arderam na fogueira vítimas da intolerância.
Bem como ensina a moderna teologia: a mansidão é o método do amor, e o amor é a religião de Cristo. Parcela considerável do cristianismo, em especial o protestantismo, corre o risco de perder boa parcela de seu capital moral ao transformar os equívocos de uma minoria que foi historicamente perseguida e discriminada, em desculpa para censurá-la e condená-la.
O radicalismo de qualquer lado é condenável, e os tribunais estão aí para resolver os excessos. Não se pode, porém, sob pena de se perder de vista o fato de que o indivíduo é a verdadeira razão de ser do estado (e das religiões), fomentar a intolerância.
(*Leonardo Avelino Duarte é advogado e professor universitário em Campo Grande e ex-presidente da OAB-MS leonardo@avelinoduarte.com.br)
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Postado por: Leonardo Avelino Duarte (*), 12 Junho 2015 às 15:30 - em: Falando Nisso