Assim caminha a humanidade Dante Filho (*)

Assim caminha a humanidade

Na segunda-feira a geladeira quebrou. Na terça, o computador pifou. Na quarta, foi a máquina de lavar roupa. A semana estava apenas começando. Na quinta, a mulher pediu divórcio. Na sexta, o carro teve um problema na rebinboca da parafuseta. No sábado, os filhos avisaram que estavam saindo de casa. No domingo, ele bebeu uma garrafa de vodka e dormiu o dia inteiro.
 
Os dias seguintes não seriam melhores. Deu tudo errado. Ele perdeu o emprego, o advogado da ex-esposa abriu o processo de separação, o imposto de renda enviou correspondência cobrando-lhe uma multa por “incorreções na declaração do exercício anterior”. Em poucos meses, acreditando-se vítima de uma conspiração universal, morando num pequeno apartamento, vivendo de pequenos bicos, teve, enfim, que começar a se desfazer dos móveis, dos quadros, dos livros, do carro velho, enfim, dos seus andrajos e veleidades.
 
Ultrapassado seus limites financeiros, foi despejado, ofendido e humilhado, e começou, como se diz, a vender o almoço para comer o jantar. Literalmente. Não durou muito tempo, bebendo e fumando como nunca houvera antes, teve um colapso nervoso. Foi assim que o jogaram numa enfermaria psiquiátrica e o mantiveram dopado durante meses.
 
Um dia, meio alucinado, estonteado, conseguiu escapar do catre que o haviam aprisionado. Achou numa lata de lixo algumas roupas velhas e restos de comida embaladas num marmitex. Passou a viver perambulando, catando pedaços e sobras, procurando algo perdido no chão, sujo, desgraçadamente assustador, cabelos duros e desgrenhados, barba rala, dentes podres, olhar esquizóide, tributando coisas deixadas pra trás.
 
Sem querer, descobriu a emoção das estradas. Começou a andar e não parou mais. Atravessou o País. Subiu para o norte, entrou na Bahia, desceu por Minas, cruzou o Espírito Santo, bebeu a água salgada de Santa Catarina, cortou o Paraná, atravessou a fronteira, entrou no Paraguai, bateu na Bolívia, contornando ao leste até Corumbá, até voltar ao lugar de onde havia saído.
 
Seu retorno foi estranho. O tempo passara apagando todas as memórias. Tudo estava diferente. Descobriu seu cantinho na borda da cidade, na nascente de um córrego. Construiu um barraco de lona preta, e ali ficou, com a solidão como seu único amparo, vivendo apenas uma hora de cada vez.
 
Dormia durante o dia e perambulava à noite. Aceitava as conveniências de sua loucura. Fugia de gente. Encruava sua roupa ordinária na pele amorfa. Desenhava retas imaginárias para fugir das curvas das esquinas perigosas e jamais pedira algo a alguém nem aceitava o oferecimento de qualquer esmola que lhe fosse oferecida. Ele aprendeu a pegar as coisas que lhe eram dadas de graça pelo mundo. No lixo, nas calçadas, nos terrenos baldios, nos cantos dos submundos das vielas desconhecidas.
 
Uma noite, já tarde, percorrendo o centro, viu sair de um restaurante a ex-mulher e os dois filhos. Ficou de longe olhando a cena: os três entrando num carro e saindo em direção ao Parque dos Poderes. Não sentiu nada. Não se lembrou de nada. Apenas os haviam reconhecido porque todo bicho sabe por instinto quem são os seus e as suas crias. Não riu nem chorou. Apenas uma frase veio à cabeça: e pensar que tudo isso começou por causa de uma geladeira quebrada.
 
PS - O texto acima foi escrito na sua primeira versão em 1980. Eram os anos de chumbo. A falta de esperança (e perspectiva) era sempre aterrorizante. Para muita gente, a saída era caminhar a ermo esperando encontrar um sentido para viver. A Ditadura deixou uma lição importante para a minha geração: esse País não é para amadores.
 
(*Dante Filho é jornalista e escritor - dantefilho@terra.com.br)


Deixe seu comentário


Postado por: Dante Filho (*), 31 Março 2014 às 13:10 - em: Falando Nisso


MAIS LIDAS