Aprendizado repentino Fábio Mazziotti Pereira (*)

Aprendizado repentino

Alguns personagens históricos são inesquecíveis. Tanto que acabam se tornando lendários e frequentemente dão o ar de sua graça nos bancos escolares ou mesmo nas conversas de bar. Uma dessas figuras é a de Rui Barbosa. Escritor, jurista e político, Rui, no início do século passado, ficou conhecido pela maneira pomposa com que se dirigia às pessoas, sempre por meio de uma linguagem impecável e, às vezes, indecifrável. 

 
Conta-se que certa vez estava em sua casa, no Rio de Janeiro, onde hoje é um museu que já visitei há alguns anos. Rui Barbosa lia, refletindo profundamente sobre complexas questões jurídicas, quando ouviu um barulho diferente vindo do quintal de sua casa. Era costume da classe média carioca naquela época criar galinhas e patos no próprio quintal. O barulho, entretanto, parecia ser de um desespero das aves fora do comum. O eloquente jurista, então, vai até o local, e antes mesmo de descer as escadas que davam acesso à área, avista um ladrão de galinhas, com um pato ou frango embaixo do braço, pronto para pular de volta o muro. 
 
Rui Barbosa aproxima-se vagarosamente do indivíduo e, surpreendendo-o diz:
 
― Para, oh, ignóbil criatura! Não é pelo bico emplumado desse bípede que te interpelo, nem ainda pelo valor intrínseco dos galináceos, e sim pelo ato vil e sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação. Se for por mera ignorância ou necessidade, perdoo-te, mas se é para abusar de minha elevada prosopopeia de cidadão digno e honrado, juro, pelos tacões metabólicos dos meus calçados: dar-te-ei tamanha bordoada com minha bengala fosfórica que transformarei tua massa encefálica em cinzas cadavéricas.
 
O ladrão, todo confuso, fala:
 
― Dotô, eu posso levá os frango ou não?
 
Com base nessa história, solicitei que meus alunos justificassem, em uma importante avaliação bimestral, se Rui Barbosa foi um usuário competente do idioma ao agir daquela forma. Minha resposta padrão, enquanto corrigia as provas, parecia muito óbvia e clara: “Não, visto que o personagem não soube empregar a linguagem levando em conta o interlocutor e as circunstâncias diversas que envolviam a situação. No meio da correção, surge uma prova com uma resposta bem diferente da maioria. Um “sonoro” SIM eclodia aparentemente sem nenhum pudor. 
 
Já me preparava para colocar a caneta de tinta vermelha entre os dedos e sacramentar o incauto pupilo, quando então li a justificativa. “É que Rui Barbosa teve sua residência invadida, violada. Viu um bem seu quase ser roubado e estava, aparentemente, desarmado. A única coisa que tinha disponível como “arma” era sua linguagem que, propositadamente, serviria para desnortear o meliante.”
 
Parei, refleti e não tive dúvidas: nota máxima para esse aluno. A criatividade é um dom que não se joga fora. Seguir os padrões nem sempre é a única opção eficaz, às vezes há outros meios igualmente nobres que só uma parcela enxerga. Valorizar o aluno pela coragem de acreditar em si mesmo e em sua percepção inovadora, indo contra o óbvio, é uma lição que aprendi como professor. Naquele dia entendi o sentido da frase de Guimarães Rosa: “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”.
 
Um abraço a todos.
 
(*Fábio Mazziotti, professor de Língua Portuguesa, é atualmente professor de Ensino Médio no Colégio Militar de Campo Grande)


Deixe seu comentário


Postado por: Fábio Mazziotti Pereira (*), 04 Maio 2012 às 13:30 - em: Falando Nisso


MAIS LIDAS