Élida Graziane Pinto (*)
Ano e prefeitos 'novos' não trazem milagrosamente melhor gestão
2017 começa com o peso legado pelo ano que parecia nunca findar... A mirada prospectiva sobre o ciclo que ora se inicia soa desanimadora, mas a crise abre oportunidade para reflexões e algumas possibilidades pontuais de mudanças de rumo.
A bem da verdade, parece-nos cada vez mais claro que padecemos de problemas antigos e complexos, cuja resolução não será aviada por passe de mágica, emenda constitucional via ADCT ou resolução voluntariosa para a virada do ano.
Interessante, por exemplo, será acompanharmos, com espantoso ar de normalidade e desinteresse, expressiva parcela dos milhares de novos prefeitos e novos vereadores assumirem a imensa responsabilidade de conduzirem as políticas públicas locais, sem quaisquer esforços de transição, diagnóstico ou compromisso de continuidade em relação aos programas já iniciados.
A sociedade brasileira vota como quem clama por mudanças, mas aposta ingênua e infantilmente em sobressaltos gerenciais, como se fosse possível evolução sem aprendizagem continuada em face do quanto já construído e dos erros ali cometidos. Falta-nos maturidade para a árdua tarefa de cumprirmos consistentemente o ordenamento já em vigor e para o processo permanente de correção intermediária de rumos e falhas.
Há quem venda, assim como há quem compre a ilusão de melhoria dos serviços públicos sem a manutenção de bases estruturais e sem o respeito aos pilares constitucionais de garantia dos direitos fundamentais, dentre os quais se destaca o seu financiamento proporcionalmente progressivo em face do nível das receitas públicas.
Perdemos o estoque civilizatório de aprendizado, na medida em que, a cada ciclo político-eleitoral e a cada mudança de chefia do Executivo, admitimos que sejam redesenhados os eixos da vida em sociedade para que a gestão ganhe a “cara” do gestor de ocasião ou para que acatemos univocamente a solução por ele dada como “única” possível para as crises que se apresentam ao longo do tempo.
Há mesmo muito messianismo e anseio por lideranças carismáticas que substituam a tarefa onerosa de cada qual de nós, cidadãos, cumprirmos a lei, fazermos nossa parte e exigirmos respeito republicano às prioridades eleitas nos instrumentos de planejamento como fins da sociedade.
Deixamos de controlar — difusa e coletivamente — a adequada aplicação dos recursos públicos enquanto culpamos a corrupção como fenômeno alheio às escolhas de trato paternalista e patrimonial que também a sociedade e o mercado fomentam e reclamam do Estado.
Vale lembrar, a propósito, que a imagem ainda muito trágica da alternância de poder nos municípios brasileiros reside na descontinuidade de relevantes programas governamentais, apenas em função da diferença de titularidade político-partidária da sua origem.
Infelizmente nossa realidade ainda convive com numerosos exemplos de gestores que saem deixando a “terra arrasada” (destruição tática de sistemas de informações e da memória do serviço), para negar ao sucessor condições mínimas de governabilidade.
Negar o passado ou desconstrui-lo para começar do zero a cada quatro ou oito anos, conforme a visão de curto prazo dos mandatários políticos, não só é profundamente antieconômico e irracional, como também aniquila as possibilidades de progresso consistente no médio e longo prazos.
Neste 2017, daríamos um grande passo — em meio à crise econômico-financeira e ao caos das contas públicas em diversos entes da federação — se a sociedade e os órgãos de controle obrigassem os gestores públicos a efetivamente avaliarem, na forma dos incisos I e II do artigo 74 da Constituição de 1988, os custos e os resultados dos programas executados à luz das metas físicas e financeiras inscritas nas leis de planejamento setorial e orçamentário.
Em igual medida, deveríamos categoricamente reclamar cumprimento do artigo 45 da Lei de Responsabilidade Fiscal, segundo o qual nenhuma nova obra ou serviço poderia ser criado enquanto não estiverem perfeitamente contemplados em termos de garantia de financiamento os projetos já em curso e até que esses se concluam.
Assim, diante do diagnóstico bem feito sobre o que funcionou e o que falhou no plano plurianual que ainda está em vigor neste primeiro ano de mandato dos “novos” prefeitos, o passo seguinte seria formular prognóstico de soluções que incorporem o legado já acumulado e avancem sobre as lacunas de cobertura na universalização de direitos sociais ainda tão judicializados.
Ao invés de milagres e promessas vazias do personalismo político-partidário que assola a realidade brasileira, é chegado o tempo de recuperar o ciclo basilar do artigo 6º do cinquentenário Decreto-Lei 200/1967: planejamento-execução-controle.
Nenhum projeto novo descabido, nenhuma pirotecnia, nenhuma distração sobre o básico devem ser tolerados. O ponto de partida é a avaliação sobre o cumprimento do PPA ainda em vigor para que se possa passar à consistente formulação do próximo ciclo quadrienal.
Não é trivial ou desprovido de profunda relevância para o país o momento em que se iniciam os mandatos dos prefeitos, vice-prefeitos e vereadores para o quadriênio 2017-2020. É a partir dos municípios que os problemas se acumulam, assim como é da base local que surgem possibilidades mais sustentáveis e horizontais de solução.
É preciso levar a sério a formação dos alicerces da gestão e das contas públicas no nível municipal até para que possamos superar a ignorante ilusão de que os jeitinhos e de que um “Deus brasileiro” nos salvarão das nossas incompetência, preguiça e patrimonialismo.
E, por falar em alicerce, vale a pena recuperarmos o saldo histórico das nossas mazelas acumuladas para nos darmos conta do quanto apenas temos postergado a solução dos problemas, ao invés de resolvê-los. A ilustração aqui é a do artigo 101 do Decreto-Lei 200/1967, na sua redação originária, a qual foi infelizmente alterada pelo Decreto-Lei 900/1969:
Art. 101. Ressalvados os cargos em comissão definidos em ato do Poder Executivo como de livre escolha do Presidente da República, o provimento em cargos em comissão e funções gratificadas obedecerá a critérios que considerem, entre outros requisitos, os seguintes:
I - Pertencer o funcionário aos quadros de servidores efetivos, ocupando cargo de nível adequado e cujas atribuições guardem relação com as da comissão ou função gratificada.
II - Comprovação de que o funcionário possui experiência adequada e curso de especialização apropriado ao desempenho dos encargos da comissão, considerando-se satisfeito o requisito se o funcionário se submeter a processo de aperfeiçoamento, nas condições e ocasião em que for estipulado.
III - Obrigar-se o funcionário, quando se caracterizar o interesse da Administração, ao regime de tempo integral e dedicação exclusiva.
§ 1º Em consequência do disposto no inciso III deste artigo, os funcionários que atenderem às condições estipuladas ficam sujeitos ao regime de 40 (quarenta) horas semanais de trabalho e perceberão gratificação pelo regime de tempo integral e dedicação exclusiva.
§ 2° É inerente ao exercício dos cargos em comissão e funções gratificadas diligenciar seu ocupante no sentido de que se aumente a produtividade, se reduzam os custos e se dinamizem os serviços.
Se tivéssemos um quadro de servidores comissionados aderentes aos cinquentenários requisitos acima, inclusive quanto ao caráter constitutivo ali dos deveres de majoração da produtividade, redução de custos e dinamização dos serviços, muito provavelmente não estaríamos ainda às voltas com desvios tão volumosos de recursos na execução de serviços públicos e com tamanho déficit de compreensão acerca dos custos e resultados da ação governamental.
Para este ano novo de 2017 e para os prefeitos, vice-prefeitos e vereadores que nele iniciam um novo mandato, os votos são de que aprendamos com nossos erros e incorporemos do passado a trágica lição de que adiar problemas só os torna ainda maiores e mais complexos.
Não há milagres na gestão e nas contas públicas, uma vez que subsiste inescusável o caráter cíclico do planejamento, da execução e do controle, cuja consecução podemos tornar virtuosa ou viciosa a depender das escolhas feitas ao longo do tempo. A primeira de tais escolhas, por certo, há de ser a respeitosa aderência à Constituição e ao nosso ordenamento, porque só se supera o patrimonialismo sob a vivência forte e impessoal do império da lei, sem exceções tristes como as que vivemos em 2016.
(*Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas FGV/RJ e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais UFMG)
Artigo reproduzido do site Consultor Jurídico (Conjur)
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Postado por: Élida Graziane Pinto (*), 05 Janeiro 2017 às 13:15 - em: Falando Nisso