Mais uma vez o Congresso Nacional está sendo convocado a arbitrar as relações funcionais entre os órgãos da polícia judiciária e os do Ministério Público, a fim de delimitar as atividades de cada qual no tocante à investigação criminal, tendo por moldura o desenho constitucional emanado da Carta de 88 para ambas as instituições, suas respectivas funções e responsabilidades, em face da pauta de direitos e garantias fundamentais, dentre os quais o do devido processo legal, esperando-se que ambas as Casas congressuais sejam movidas unicamente pelo compromisso com o superlativo interesse público e da sociedade.
Depois de numerosas iniciativas, em sucessivas legislaturas, as quais pretenderam reivindicar a possibilidade de o órgão ministerial proceder diretamente à apuração de crimes em geral – providência que nunca mereceu acolhida na esfera congressual, diga-se de passagem –, desta feita o que a PEC nº 37, de 2011, tem em vista consiste em explicitar, suprindo “a falta de regras claras definindo a atuação dos órgãos de segurança pública”, a reserva de competência da polícia federal e das polícias civis para instaurar e conduzir a investigação, destinada a instrumentalizar a persecução penal e munir o parquet de conjunto probatório eficiente para fundamentar eventual ação penal.
Se em torno da questão já há muito polemizavam as instituições envolvidas e se mostram controversas as contribuições doutrinárias e jurisprudenciais, sem mesmo o deslinde via legislação infraconstitucional, a Proposta em tela contribuiu para exacerbar posições antagônicas, fortemente empenhadas na prevalência da melhor interpretação, sempre buscada, porém, conforme as perspectivas e aspirações de cada um dos lados, com as quais identificam a solução mais consentânea com o interesse e a ordem públicos.
No trabalho de relatoria perante a Comissão Especial constituída na Câmara dos Deputados para proferir parecer sobre o mérito da Proposta, tive intenso e profícuo contato com as representações de entidades ligadas às Polícias e ao MP, assim como oportunidade de aprofundar a análise de vasto repertório de julgados das Cortes superiores, de manifestações, artigos e notas técnicas subscritas por jurisconsultos, autoridades e especialistas e tantos outros protagonistas do debate, mormente aqueles que se fizeram presentes nas várias audiências públicas realizadas com os membros da Comissão Especial.
Intensamente se digladiaram as teses em divergência, a começar pela discussão acirrada sobre a extensão dos efeitos, privativos ou exclusivos, que se extraem da literalidade do preceito, e a repercussão dessa reserva de competência, não apenas no tocante à atuação do MP, mas também de vasto elenco de órgãos ou entidades públicos que manejam procedimentos apuratórios singulares, em razão dos quais comumente deparam com ilícitos administrativos, fiscais ou civis que podem ter cunho penal, desde as CPIs e polícias legislativas e judiciárias ao COAF, RFB, BACEN, CVM, INSS, auditorias fiscais, corregedorias e tantos outros.
Na mesma linha, foram apontados presumidos inconvenientes da Proposta no caso de apuração de infrações praticadas por membros da própria Polícia, como do MP e por magistrados, ou nas hipóteses de delitos contra a Administração Pública ou cometidos por organizações criminosas, sem esquecer a questão da relação hierárquica dos órgãos de polícia com os Poderes Executivos da União e dos Estados. Outros debatedores mencionaram compromissos assumidos pelo País em fóruns internacionais, como a ONU, de assegurar ampla atuação contra o crime organizado e potencializar a atividade ministerial no combate ao crime, o que passaria pela existência de um órgão de controle externo da atividade policial, também com poderes próprios de investigação.
Ainda se agitou a tese dos poderes implícitos, de tal sorte que se ao MP compete o mais, que é a titularidade da ação penal, também caberia o menos, no caso, promover investigação criminal. Em relação a esta, contrapôs-se o argumento de que, no nosso sistema de persecução penal, a investigação está definida à polícia judiciária, o que afastaria suposto poder implícito, tanto mais que não se pode considerar implícita uma competência que a própria Constituição outorgou, de modo explícito, a outro órgão, aliado ao fato de que nosso sistema inadmite que quem pode acusar, possa investigar, comprometendo a imparcialidade do titular da ação penal; em outras palavras, como também foi dito, no estado democrático de direito, quem pode uma coisa, não pode a outra, a autoridade só tem o poder que a lei autoriza, conforme o delineamento constitucional, além do que a investigação criminal e a acusação judicial são atos de natureza jurídica diversa, não podendo a primeira estar contida na segunda, ou subordinar-se a esta.
Na sequência das objeções e reparos, arguiu-se, ademais, que a Proposta traduz mudança radical no sistema investigatório criminal do País, tendente a enfraquecer o combate à criminalidade e a efetividade dos direitos fundamentais, podendo, ainda, levar à anulação de infinidade de procedimentos já deflagrados, direta ou indiretamente, no âmbito ministerial.
A seu turno, em posição diametralmente oposta, correntes de opinião identificadas com os argumentos das representações policiais, perfilham o entendimento de que o exercício da atividade investigatória de crimes extrapola o papel institucional do MP, e não condiz com a disciplina constitucional da investigação criminal. Para esses manifestantes, não se justifica que o MP possa promover a investigação direta, paralela e independente, numa atuação endógena, sem controle externo, nem lhe cabe o papel de efetivo gestor das diligências e determinante dos procedimentos da apuração, sob pena de termos o controlador exercendo o papel do controlado. Nesse diapasão, aduzem como empecilho à atuação ministerial na investigação criminal a incapacidade técnico-profissional e operacional do corpo funcional do MP, pouco ou nada afeito ao embate da criminalidade nas ruas.
Remanesce, concretamente, a observação de que a investigação produzida a lattere pelo MP, numa persecução penal sem regras legais e sob critério próprio de seletividade dos casos e intervenções, significa a possibilidade de criar a verdade material que irá interessar ulteriormente à estratégia do órgão acusatório na ação penal, em detrimento do contraditório e dos direitos individuais, em suma, a antinômica assunção pelo mesmo órgão do papel investigativo e processante, como autor da ação penal e produtor de provas para suporte da pretensão punitiva.
Sem embargo, abalizadas fontes e representações preconizam a atuação investigativa incidental ou excepcional do órgão ministerial no inquérito policial, revestida de natureza supletiva, subsidiária ou complementar ao trabalho da polícia judiciária, objetivando a cooperação, a complementaridade dos esforços e o respeito mútuo das funções constitucionais.
Sob esse aspecto, irrecusável a valia da Proposta em apreço ao oportunizar a explicitação da arquitetura constitucional de competência estruturante do sistema jurídico de persecução criminal no País, quando atribui às polícias federal e civis as funções de investigação criminal e de polícia judiciária e desautoriza o ativismo ministerial proativo da persecução penal. Todavia, as competências do MP, reunidas no art. 129 da Lei Maior, permanecem íntegras, máxime as de promover as medidas necessárias à garantia dos direitos constitucionais (inciso II), exercer o controle externo da atividade policial (inciso VII), requisitar diligências investigatórias e a instauração do inquérito policial (inciso VIII), ou seja, dentro dos justos limites traçados pelo desenho constitucional, mas não como sucedâneas ou alternativas ao trabalho policial.
Ao termo da audiência das partes interessadas e após detida análise das valiosas contribuições que aportaram à Comissão Especial e a esta relatoria, construímos solução normativa parametrizada pelos superiores interesses da sociedade, que colima a interação e sinergia dos órgãos que compartilham obrigações em torno da segurança pública, as Polícias judiciárias e os segmentos do MP, consoante se pode averiguar na Emenda Substitutiva que apresentei à PEC 37, de 2011.
A partir da explicitação de competência privativa da polícia judiciária para a apuração criminal, mediante aditamento de parágrafo ao art. 144 da CF, o que era originariamente objeto da PEC, primeiramente, busquei ressalvar, ainda que tido por muitos desnecessário, as atribuições equipolentes das CPIs, das polícias legislativas em geral, da mesma forma que em relação às infrações cometidas por magistrados e promotores ou procuradores, as das Cortes de Justiça e dos segmentos do próprio MP, em relação a seus respectivos membros.
Em segundo lugar, também me ative ao art. 129, que cuida da expressiva gama de afazeres conforme a destinação institucional do MP, ao qual propus acrescentar dois parágrafos, o primeiro ao intento de facultar a complementação de provas pelo órgão ministerial em todos os procedimentos realizados por órgãos não policiais ou na hipótese de infrações penais conexas apuradas em inquérito civil do próprio MP – o que responde às objeções daqueles que viam a PEC como óbice à continuidade do papel legalmente estabelecido para numerosas entidades ou órgãos estatais com poderes investigatórios diversos.
Ocorre que, no caso de procedimentos conduzidos por outros órgãos públicos, encarregados de promover diligências investigatórias indispensáveis à apuração criminal, como o Banco Central, o IBAMA, a Previdência Social, a Receita Federal e vários outros, por óbvio, não atuam como autoridade policial nem ministerial, nem se trata de apuração criminal, mas de procedimentos preliminares ou ancilares de natureza administrativa, para coleta de provas na fase pré-processual, que decorrem do exercício de atribuições previstas em leis próprias, em qualquer caso não equiparados a, ou decorrentes de, atribuições investigatórias penais.
O outro parágrafo agregado ao art. 129 contempla a atuação subsidiária ou complementar reconhecida ao MP, na apuração de infrações penais conduzida por autoridade policial, no âmbito do inquérito policial, ou por autoridade militar, no âmbito do inquérito policial militar, em atenção às competências próprias, em todos os casos de crimes praticados no exercício da função, ou a pretexto de exercê-la, ou contra a Administração Pública, tanto por agente político quanto agente público, assim também os crimes envolvendo organização criminosa – o que igualmente deverá afastar os reparos feitos principalmente pelas entidades representativas ministeriais.
Por último, para obviar a alegada invalidação de procedimentos anteriormente instaurados pelo MP, ficam estes preservados em razão de ressalva expressa. Estamos convencidos de que, nos termos aventados, será possível superar as dificuldades recíprocas e unir esforços, porque, como antes tive ocasião de declarar e ora repito, “afinal de contas, ministério público e polícia devem atuar em sintonia para o bem de toda a sociedade”.
(O advogado Fábio Trad é deputado federal pelo PMDB-MS)