Falando Nisso













Em 2004, uma pesquisa realizada a pedido do Programa de las Naciones Unidas para el Desarrollo (PENUD), órgão da Organizações das Nações Unidas (ONU), que ouviu 19 mil pessoas de 18 países da América Latina (Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Chile, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai, Venezuela), revelava sinais preocupantes não apenas para a classe política, mas para todos aqueles que comungam a fé democrática, apontando os seguintes resultados:

 
58,1% dos entrevistados concordam que o Presidente da República possa ir além das leis;
 
56,3 crêem que o desenvolvimento econômico seja mais importante que a democracia;
 
54,7% apoiariam um governo autoritário se resolvesse os problemas econômicos;
 
43,9% não crêem que a democracia solucione os problemas do país;
 
40% crêem que possa haver democracia sem partidos;
 
38,25% crêem que possa haver democracia sem Congresso Nacional;
 
37,2% concordam que o presidente ponha ordem pela força;
 
37,2% concordam que o presidente controle os meios de comunicação
 
36% concordam que o presidente deixe de lado os partidos e o Congresso;
 
25,1% não crêem que a democracia seja indispensável para o desenvolvimento.
 
Qualquer interpretação bem-intencionada dos números e das variantes desta pesquisa suscita perplexidades e desperta profundo temor. É que a lógica subjacente à mais trivial das conclusões extraídas da pesquisa expõe o risco do pernicioso fenômeno da deslegitimação da própria democracia representativa, insinuando perspectivas nada alentadoras para as liberdades públicas e as franquias delas decorrentes.
 
A democracia é conquista que precisa ser vigiada com olhos de lince e devoção missionária. Ditadura eficiente e democracia ineficaz não é dilema que se possa levar a sério por quem professa a convicção nos ideais democráticos. No dia em que a maioria aceitar a troca do pão pela liberdade, o retrocesso, por inevitável, fulminará o valor que dignifica a condição humana: a liberdade. 
 
Uma análise menos apressada deste processo nos remete a reflexões sobre a própria incidência – quase que epidêmica no Brasil dos últimos anos – de um fenômeno lateral a que alguns denominam: criminalização da política.
 
De fato, a proliferação na mídia de maus exemplos de agentes públicos é sintoma revelador de que a atividade política está se deixando associar aos piores vícios da atividade comercial privada para a qual o que importa é o lucro, pouco ou nada importando os meios para se alcançá-lo o mais rápido possível.
 
 O fato é que a política hoje é a fonte mais generosa das páginas policiais.
 
Refém das próprias contradições, depara-se com crescentes dificuldades para produzir respostas satisfatórias aos anseios das maiorias, tangenciando a inépcia para solucionar as angústias das minorias. Os impulsos espontâneos dos chilenos e espanhóis descortinam promissoras reflexões sobre este processo.
 
Do lado de quem vota, o efeito rebote que chega às instâncias oficiais do Poder tem nome: despeito, e grave, descrença, e o pior, desprezo não só pelos políticos, em especial os maus, mas a classe política, e o mais assustador, à própria política.
 
Neste cenário, não há como negar que está em curso um fenômeno revelador de grave patologia social, pois ao tempo em que a política se distancia de sua magna essência para constituir-se em desejo dos pragmáticos e espertos, mais servirá ao utilitarismo rasteiro daqueles que a exercem pensando em si em detrimento da coletividade
 
A quem interessa difundir a ojeriza à Política ? Quais forças da sociedade obteriam vantagem com o crescente distanciamento do povo em relação a democracia representativa ?
 
Frei Betto, um dos maiores pensadores do país, responde:
 
“Numa verdadeira democracia, a universalização do voto deveria coincidir com a socialização das riquezas, no sentido de assegurar a todos uma renda mínima e os três direitos básicos, pela ordem: alimentação, saúde e educação. Como isso não consta da pauta do sistema, procura-se inverter o processo: inocula-se na população o horror à política de modo a relegá-la ao domínio privado de uns poucos. Quem tem nojo da política é governado por quem não tem. E os maus políticos tudo fazem para usar o poder público em benefício de seus interesses privados.”
 
Neste ritmo, impõe-se uma pausa para recortar um paradoxo: se o sistema representativo de delegação popular do poder é um diálogo entre cidadão e candidato que se consuma com o voto, por que só se vê aumentar o número de hóspedes do Código Penal nas instâncias formais da política?
 
Será que o discurso da ética já não mais sensibiliza os milhares de eleitores que, compondo enormes contingentes pelo Brasil afora, multiplicam a sensação de que a política está virando um caso de polícia? Será exagero temer pela própria democracia em um sistema que expõe o crescimento exponencial de eleitores para quem o “rouba mas faz” justifica o voto?
 
Longe de mim qualquer pretensão quixotesca, posto que não tenho vocação para os reducionismos que quase sempre nos induzem a soluções equivocadas. Não, não se está aqui a proclamar uma guerra entre o bem e o mal; entre quem fala e os outros; entre o certo e o errado. Repito: longe disso.
 
Basta-me um tento modesto: despertar a reflexão sobre o fenômeno da despolitização da política em uma quadra histórica em que o fortalecimento do poder político do Mercado cresce à medida em que se enfraquece o poder político do sistema representativo.  
 
Política trancafiada nos porões dos interesses subalternos, distante dos bem-intencionados que professam e praticam valores e princípios condizentes com a atividade pública, é a receita certa para o liberticídio.
 
Dos políticos se exige basicamente duas coisas: que trabalhem pelo bem-comum e que não roubem. Muitos transgrediram este binômio, mesmo assim continuam políticos e alguns consagrados nas urnas por suas próprias vítimas.     
 
À maioria que leva em conta na hora do voto o candidato que é, e não o que tem, toda a liberdade para repudiar os políticos, de preferência os maus, jamais porém descrer da política, porque ela não pode ser culpada pelo desvio de quem a pretexto de praticá-la, subverte a sua essência, desviando-se dos seus propósitos.
 
(*Fábio Ricardo Trad, advogado de Campo Grande e ex-presidente da OAB-MS, é deputado federal pelo PMDB-MS)