O salvador da Pátria está de togas?

O salvador da Pátria está de togas?

Postado por Leonardo Avelino Duarte (*) , 02 Março 2017 às 19:15 - em: Artigos

Portugal era uma das maiores potências mundiais em meados do século XVI. Tinha extensos domínios de terra na América do Sul, África e Ásia. Desbravara a China e o Japão. Tinha uma economia próspera e valiosas rotas comerciais que ligavam a Europa com o resto do mundo. Era um estado moderno e centralizado. Rivalizava apenas com a Espanha.
 
Embebido com histórias a respeito da grandeza de seu país, o jovem rei Dom Sebastião, logo ao assumir o poder em 1568, então com apenas 14 anos, resolve invadir o Marrocos. Reúne, para tanto, o maior e mais poderoso exército jamais visto na história do Reino Portucalense, e contrariando todos os seus principais conselheiros, parte em uma cruzada para conquistar o norte da África.
 
A ofensiva portuguesa começou com alguns sucessos em 1574, porém, em 4 de agosto de 1578 os cruzados sofreram uma derrota desastrosa e gigantesca em Alcácer-Quibir. Nesta batalha, a flor da nobreza portuguesa pereceu. Nela, também, o audacioso rei português foi morto.
 
Em Portugal, as pessoas não acreditavam no que havia acontecido. Os relatos da batalha não eram uniformes, e parece que ninguém assumiu a responsabilidade de relatar a catástrofe para a nação. Falavam que a escaramuça tinha sido indefinida, que o rei estava apenas desaparecido, e que a qualquer momento iria retornar. Sequer se cogitava da sua morte, já que Dom Sebastião não tinha filhos ou irmãos capazes de assumir o trono. De fato, seu parente mais próximo era o rei da Espanha, Felipe II.
 
Os dias, entretanto, passavam, e Dom Sebastião não retornava. Para manter a independência do reino, um cardeal tio-avô do rei pediu licença ao Papa para assumir o trono e casar. A licença foi concedida, mas o Cardeal faleceu em 1580 sem deixar descendentes. Para todos os fins, o trono português estava vago, tendo o Rei Espanhol o direito à sucessão. Tendo em vista que estava sem exército, com as finanças arruinadas, com a sua nobreza e o seu rei mortos, e tudo em razão de uma má-sucedida cruzada, a orgulhosa nação portuguesa entregou sua soberania à Espanha, dando início a 60 anos de reino-unido na península Ibérica.
 
Em Portugal, entretanto, as pessoas não acreditavam no que havia ocorrido, crendo, sinceramente, que a qualquer momento Dom Sebastião iria retornar. Isso era compreensível, porque praticamente do dia para a noite o país havia deixado de ser uma poderosa e rica nação, tendo perdido não só o status de superpotência, mas também a própria independência. Quando, em 1640, Portugal reobteve a sua soberania, era uma nação pobre e dependente dos ingleses.
 
O impacto psicológico da morte do Rei Dom Sebastião foi tão profundo que deu origem ao fenômeno do Sebastianismo, que é, basicamente, acreditar que o salvador irá chegar, irá retornar, irá aparecer. Como descendentes culturais dos portugueses, nós, brasileiros, somos profundamente, digamos assim, "sebastianistas". Esperamos sempre um salvador nacional aparecer. Alguém que mude nossa realidade. Uma pessoa que aparece não se sabe de onde e que assuma as rédeas do bom comando de nossa República.
 
Historicamente, nosso Dom Sebastião era o presidente de momento. Getúlio e Juscelino, certamente, encarnavam o ideal de salvação popular. Tancredo, sem mesmo assumir, foi um grande Dom Sebastião. Mesmo Sarney teve seu momento de aparecer ao povo como salvador  – quem quer ser o fiscal do Sarney? Collor, por seu lado, foi eleito com um plano "sebastianista": o de derrotar a inflação e combater os marajás. Mais recentemente, Lula apareceu como o predestinado para grande parte da população nacional.
 
O que há de curioso em nosso país é que, ultimamente, talvez cansados de esperar uma solução que venha do executivo, o Dom Sebastião do momento seja alguém do Judiciário, ou com a carreira jurídica. Primeiro, timidamente, com a ministra Eliana Calmon. Depois, não tão timidamente assim, com o ministro Joaquim Barbosa, e agora com o juiz Sérgio Moro. Boa parte da população espera que a sua salvação – neste caso o fim da corrupção – esteja encarnada na figura deste juiz e de alguns ministros do Supremo.
 
Sem discutir o mérito da operação Lava-Jato, cujos inúmeros acertos no combate à corrupção são evidentes, e cujos desacertos darão ainda ensejo a muito debate, especialmente no campo das liberdades fundamentais, é preciso lembrar que o sebastianismo não é bom para um juiz, porque magistrados não podem ser envolvidos no jogo de interesses da mídia ou da população. Magistratura é sacerdócio: quem julga não pode e não deve ter lado. Juiz deve ser como um bom padre: odeia o pecado, mas lamenta quando não pode dar a  absolvição na confissão, ou a comunhão na missa. Mais, e além disso, a exposição midiática pode levar a população a confundir o papel constitucional da Magistratura com o do Ministério Público. Acusar não é julgar, e certamente não faz parte das atribuições de um magistrado.
 
O sebastianismo enfraquece o Poder Judiciário, já que torna juízes prisioneiros do ideário popular, e torna verdadeira a anedota de que antigamente o juiz corajoso condenava, e hoje o juiz corajoso absolve.
 
Demais disso, o sebastianismo faz crescer a tentação de que magistrados possam substituir o legislativo ou o executivo, com decisões políticas, não jurídicas. Isso faria arruinar por todo o já precário arcabouço de segurança jurídica no país. Juízes, para a segurança de nossos direitos, não foram eleitos, não devendo, por isso, dar satisfações além daquela exigida na fundamentação de suas decisões.
 
Claro que juízes podem e devem torcer e trabalhar pelo fim da corrupção. Este é o desejo de todo bom brasileiro. Mas essa responsabilidade não deve fazer com que haja prejulgamento em seus processos, ou obnubilar sua visão do direito. A balança não pode pender para um dos lados. O combate a corrupção não pode se transformar em uma inquisição.
 
Se é certo que até agora a magistratura brasileira, diuturna e discretamente, faz a sua parte para tornar nossa república melhor, julgando muito, mas vendo um aumento cada vez maior do número de demandas, e mesmo assim resistido bravamente à síndrome do sebastianismo, por outro lado é indubitável que Dom Sebastião não voltará. Enquanto a população não entender que a responsabilidade por seu destino não é de outros, mas de si mesma, que não haverá salvadores nem grandes líderes, não haverá mudanças profundas e duradouras, apenas aquelas pontuais e de momento. É preciso, antes de mais nada, investir em educação e em uma grande reforma política. O direito é aplicado, em geral, apenas em último caso, quando outros controles sociais fracassarem, inclusive a moral pública. O mais poderoso detergente capaz de limpar a república da corrupção é a ética. E em democracias, um bom voto ajuda.
 
(*Leonardo Avelino Duarte é advogado, professor universitário e ex-presidente da OAB-MS)