Três tipos diferentes, das ruas para a história no carnaval de Campo Grande

Três tipos diferentes, das ruas para a história no carnaval de Campo Grande
Edson Contar e imagens de Pompílio, Barbosa e Josetti

"Três tipos diferentes"... foi o samba enredo da escola campeã do carnaval de Campo Grande há 31 anos, quando a Igrejinha levou o troféu em 1981. O autor foi Edson Contar, historiador que faz parte da história da cidade como descendente do fundador José Pereira. A letra homenageava e registrava na história local Pompílio, Barbosa e Josetti, três moradores de rua que se tornaram personagens inesquecíveis de comerciantes e moradores da região central no século passado. Aproveitando o embalo do atual carnaval, leia o que dizia o samba da Igrejinha. E leia também como Edson Contar descreveu Pompílio, Barbosa e Josetti, os três "tipos diferentes", em artigo publicado à época em jornais como o Correio do Estado, Diário da Serra e jornal Brasil Central, que está também em seu livro "Das Margens do Prosa ao Bar do Zé".

 
TIPOS DIFERENTES
Pompílio, Barbosa e Josetti
(enredo de 1981 GRES Igrejinha)
letra e música: Edson C Contar
 
"Tipos diferentes conhecemos,
Durante nossa infância e mocidade,
Figuras que jamais esqueceremos,
Viveram pelas ruas da Cidade...
 
Passaram e deixaram sua imagem,
Eram de paz
 E paz pregaram nesta terra,
O seu viver, o seu saber, eram mensagens,
Aos que eram "sãos"
E mesmo assim, faziam guerra...
 
Onde anda o Pompilio?
Pretinho de bom coração...
Que saudades do Josetti,
Dos anéis por toda a mão...
E do Barbosa,
Que figura tão brilhante,
Que andava em busca
 De um lindo diamante...
 
De onde vieram?
Pra onde foram?...
Não disseram adeus...
Onde estiverem,
Estarão em paz com Deus!
 
Tão diferentes!"
 
Quem foram Pompílio, Barbosa e Josetti... [Por Edson C. Contar]
 
"TRATAMENTO CUIABANO"...
 
Para os mais jovens, que não conheceram esses três tipos folclóricos da cidade, Pompilio era um  afro descendente de pequena estatura, vestia roupas muitos números acima de seu manequim, calça larga, paletó comprido que lhe chegava aos joelhos e desde cedo estava pela Rua 14 de julho, andando tranquilamente entre a multidão, sem pedir esmolas nem incomodar as pessoas, deixava uma latinha no chão e ali recolhia as moedas que os amigos depositavam. Seu simples olhar já lhe trazia uns trocados que ele imediatamente investia em doses de "chica bôa", no bar mais próximo...
 
Falava pouco, ou quase nada. Apenas olhava o vai-vem dos apressados, imaginando talvez o "por quê" de tanta pressa para o nada... Dos três, era o único que tinha familia. Morava na antiga Joaquim Murtinho, ou Barão do Melgaço, não me lembro bem. Firmava-se num cabo de vassoura, como amparo para a tonteira que o álcool provocava.
 
Embora a petizada fizesse sua farra com o Pompílio, ele jamais ameaçou usar sua bengala para reagir. Seguia calmo e tranquilo seu caminho de volta à casa. Um dia, numa época de repressão aos mendigos de rua, não se sabe a mando de quem, levaram Pompílio para "tratamento" em Cuiabá. Ao que se sabe, nunca chegou ao destino. É uma história que tento desvendar há muitos anos e não consigo.
 
ALZIRA E O DIAMANTE...
 
Já o Barbosa, tinha uma história conhecida. Foi garimpeiro ali pras bandas de Corguinho. Era também "afro-descendente", como querem os cultos legisladores, e sua história, como a de muitos, envolveu amor e decepção. Contava meu velho pai, que conhecera Barbosa dos tempos que vinha a cidade e trocava seus xibius (pequenos diamantes) por mercadorias na Casa Mineira e na Casa Calarge, da qual meu pai foi sócio e gerente.
 
Permanecia pouco tempo na cidade e retornava à sua lida na busca do brilho das pedras, onde vivia em companhia de uma linda mulher branca de nome Alzira. Um dia, Barbosa teria encontrado uma rica pedra de diamante, de tamanho, forma, brilho e qualidade ímpar. Voltou ao rancho e, com a cumplicidade de Alzira, escondeu em lugar seguro a fortuna de tantos anos de trabalho. Acontece que Alzira já andava de namorico com o chefe da guarnição policial do distrito, e contou a ele a história, convencendo o policial a largar o oficio e juntos fugirem pra longe, recomeçando a vida em meio a luxos e folguedos que Barbosa não concebia em sua simplicidade e inocência de homem humilde e caseiro.
 
Numa noite fria e chuvosa, Barbosa encontrou seu rancho vazio... Seus xibius e a valiosa pedra que lhe daria tranquilidade por toda vida, desapareceram também. Ensandeceu. Pirou geral. Como um louco, ou já enlouquecido, corria pelo garimpo e pela currutela procurando Alzira e seus diamantes. Ela já estaria longe, gozando, pela primeira vez, a aventura de viajar pelos trilhos da noroeste em direção a lugares que ninguém nunca mais soube.
 
Barbosa veio para Campo Grande, talvez na esperança de encontrá-la, mas nunca mais viu Alzira e suas pedras. Dai em diante, vagava pelas ruas, enrolado em um cobertor que à época chamavam "pega negrinho", descalço e em trapos. Tudo o que brilhava pelas sarjetas ele pegava, olhava em direção a luz como a examinar uma pedra e desfazia-se do engano, passando a buscar novos brilhos pelas calçadas. Manso, simpático e de boa fé, cumprimentava a todos e era por todos respeitado na 14 de julho, seu pedaço favorito na cidade. Dormia em baixo das marquises e raramente aceitava esmolas. Tinha um orgulho herdado dos tempos que seus xibius valiam mais que a moeda corrente. 
 
Durou até o inicio dos anos oitenta, já com noventa anos de trabalho e sofrimento. Ironicamente ele, que já morava no Asilo para onde fora levado por pessoas da cidade, morreu na noite em que a escola de samba Igrejinha cantava na avenida o samba que falava de sua desdita. Coisa que só Deus saberia explicar. Talvez, lá do céu, Barbosa tenha assistido a escola de samba comemorar a vitória naquele ano, sendo ele um dos personagens principais, figurado na avenida pelo saudoso "Fumaça" da Igrejinha...
 
O GENTLEMAN DAS RUAS...
 
Já o Josetti, foi alguém muito especial e, escrever sobre ele acaba sendo ousadia de qualquer cronista, depois que o saudoso Ulisses Serra o descreveu com tanta maestria e verve incomum no seu livro "Camalotes e Guavirais", não deixando espaço para nada mais esclarecedor e rico em detalhes sobre uma pessoa.
 
Peço vênia a sua memória para extrair o primeiro verso de sua rica crônica onde ele diz: -"Josetti era um vaganau diferente. De familia ilustre, tinha candura e mansuetude"...
Em poucas palavras, Ulisses traz a imagem perfeita de um homem que, no passado teria sido importante guarda livros do porto de Santos, membro de familia ilustre e moço de requintados costumes, culto e elegante.
 
Entende-se nas entrelinhas de sua vida, que teria perdido a cabeça (e mais tarde, o juizo) também por amor (ou desamor) à uma mulher. O que se tem certeza é do homem que por aqui apareceu, vagando pelas ruas, vestido em rotos ternos, gravata, e seu indefectível chapéu, como era o costume na época, chamando atenção pelos dez ou doze aneis que usava nas mãos, todos de latão e pechibeque, como cita Ulisses.
 
Mantinha longos papos com os doutores da terra, demostrando sempre uma certa sabedoria, vinda das brumas de seu passado e complementada pelas andanças que a vida lhe impôs. Era um gentleman, embora em andrajos. Diziam que ele teria passado por Corumbá, mas nunca se soube a verdade de tal estória para torná-la parte da história de Josetti.
 
Vez por outra, os boêmios da cidade faziam com que vestisse ternos limpos e ele aparecia renovado em seus passeios pela velha 14 de julho, sempre imponente, generoso e atento aos que lhe cediam participar das conversas comuns nas portas das lojas.
 
Nada pedia. Recebia de bom grado o convite para aceitar um prato de comida, como se convidado fosse para uma festa. Numa noite fria de junho, passou para a eternidade, sob o vão da escadaria do edificio Korndorfer, onde se abrigava por deferência do também saudoso Frederico Korndorfer, depois de Dona Olga, sua esposa.
 
Foi o conhecido Gabura e alguns amigos que o vestiram elegantemente, adquiriram o caixão e providenciaram um cantinho no cemitério Santo antônio e mandaram até rezar missa de sétimo dia para que aquele misterioso mas respeitado e querido tipo que enriqueceu a história dos vários anônimos que passaram pela Campo Grande de ontem e aqui ficaram. 
 
Como eu disse no samba, Pompilio, Barbosa e Josetti, "não disseram adeus" ...continuarão vivos pelos livros e na saudade dos que os conheceram. Que tenham encontrado a paz, com Deus!


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Postado por: Marco Eusébio, 20 Fevereiro 2012 às 11:35 - em: Garimpando Historia


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