A crise da advocacia e a servidão voluntária Jully Heyder (*)

A crise da advocacia e a servidão voluntária

Etienne de La Boétie, um jovem francês nascido no século XVI, escreveu com apenas 18 anos de idade o clássico livro “Discurso Sobre a Servidão Voluntária”.  Nela, La Boétie pronunciava a liberdade como um valor inato a todo ser, pelo qual involuntariamente nos dispomos a lutar. O estudo teve seu mérito reconhecido ao explorar as razões pelas quais as pessoas, em determinadas circunstâncias, aceitam ou até optam por abandonar a liberdade, preferindo o jugo, condição à qual chamou “servidão voluntária”.
 
La Boétie menciona como primeira causa da servidão voluntária, o hábito, ou seja, o costume servil. Dizia: “assim, os homens que nascem sob o jugo, alimentados e criados na servidão, sem olhar mais longe, contentam-se em viver como nasceram”.
 
Do costume ainda viria a segunda causa destacada de abandono voluntário da liberdade: a covardia. Para Etienne: “com a liberdade se perde de um golpe a valentia. As pessoas subjugadas não sentem nem alegria no combate, nem rigor. Não sentem ferver no coração o ardor da liberdade, que faz desprezar o perigo e dá vontade de conseguir a honra e a glória”.
 
A conclusão de La Boétie ainda aponta para a última, talvez a mais relevante causa da servidão voluntária, que é a “participação na tirania”. Segundo ele, existem interesseiros que se deixam seduzir pelo esplendor dos tesouros públicos sob a guarda do tirano, os que, em conluio, garantem e asseguram seu poder para tentar se beneficiar de algum modo.
 
O estudo de La Boétie é intrigante e nos permite cotejá-lo com nossa realidade. Na condição de cidadãos, por exemplo, poderíamos questionar a nossa tolerância a uma perversa carga tributária destinada a sustentar, em grande parte, os privilégios de uma classe política reconhecidamente corrupta e desacreditada, ao tempo que continuamos a entregar-lhes poder pelo voto. Como se explicar tal incoerência? Sob este aspecto é evidente que estamos optando pela servidão voluntária.
 
Como advogados, seria razoável questionarmos o motivo pelo qual, mesmo sendo destinatários de várias prerrogativas garantidas por Lei e pela Constituição (necessárias ao exercício do direito de defesa da sociedade), e ainda estando nós juramentados no dever de exercer a advocacia com dignidade e independência, temos aceitado passivamente inumeráveis agressões a nossos direitos, com encolhimento acentuado do respeito necessário ao exercício da profissão.
 
Costume, falta de coragem ou benefício do sistema! Pergunto: Alguns destes fatores, apontados por La Boétie como causas da servidão voluntária, nos impedem de lutar por nossa liberdade profissional?
 
Não é incomum que advogados passem de defensores à condição de réus. Por portaria, são impedidos de se entrevistar com clientes presos. Multiplicam-se placas e avisos nas portas dos gabinetes de magistrados proibindo a entrada de advogados. Horários de funcionamento da justiça foram reduzidos. Sigilo entre advogado e cliente é livremente quebrado e advogados são grampeados. A vileza, enfim, ameaça nossa profissão e já se abate sobre nossos honorários. Os exemplos, enfim, reduplicam-se assustadoramente.
 
A OAB, por sua vez, preferiu ser “amiga do rei”. Imiscui-se, infelizmente, pelas veredas do pragmatismo e das facilidades, vendendo a honra da advocacia por um punhado de pequenos favores e privilégios destinados aos seus dirigentes de plantão (esse assunto, em particular, merece outro artigo).
 
A nova geração da advocacia não pode se acostumar a este estado de coisas! Nem deixar que o temor predomine sobre a necessidade de defender nossa liberdade. E, sobretudo, não pode prevalecer entre nós, advogados, amantes do direito e da justiça, a ideia de que é melhor ser “amigo do rei” do que lutar contra a opressão que aflige nossa profissão.
 
A verve da advocacia está sujeita, invariavelmente, à liberdade com que atua o advogado. Quando damos lugar ao comodismo e ao medo, ou se preferimos a conveniência ao invés da liberdade, estamos sacrificando a própria essência da advocacia e colocando em risco nosso próprio futuro.
 
Acredito que o advogado precisa compreender-se novamente como um ser livre e intrépido, que tem seu escudo forjado pela Lei e pela Justiça, não havendo temor em sua atuação profissional. Isso é o que queremos! Isso é o que esperamos: Liberdade à advocacia!
 
Que 2018 seja um ano de vitória!
 
(*Jully Heyder da Cunha Souza é advogado em Campo Grande, professor universitário e foi secretário-geral adjunto da OAB-MS 2013/2014 - jullyheyder@gmail.com)


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Postado por: Jully Heyder (*), 21 Dezembro 2017 às 15:45 - em: Falando Nisso


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